Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer-vos o meu óbolo,
a fim de vos ajudar a avançar, desassombrada mente, pela senda do
aperfeiçoamento em que entrastes. Nós nos devemos uns aos outros; somente pela
união sincera e fraternal entre os Espíritos e os encarnados será possível a
regeneração.
O amor aos bens terrenos constitui um dos mais fortes
óbices ao vosso adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais
bens, destruís as vossas faculdades de amar, com as aplicardes todas às coisas
materiais. Sede sinceros: proporciona a riqueza uma felicidade sem mescla?
Quando tendes cheios os cofres, não há sempre um vazio no vosso coração? No
fundo dessa cesta de flores não há sempre oculto um réptil? Compreendo a
satisfação, bem justa, aliás, que experimenta o homem que, por meio de trabalho
honrado e assíduo, ganhou uma fortuna; mas, dessa satisfação, muito natural e
que Deus aprova, a um apego que absorve todos os outros sentimentos e paralisa
os impulsos do coração vai grande distância, tão grande quanto a que separa da
prodigalidade exagerada a sórdida avareza, dois vícios entre os quais colocou
Deus a caridade, santa e salutar virtude que ensina o rico a dar sem ostentação,
para que o pobre receba sem baixeza.
Quer a fortuna vos tenha vindo da vossa família, quer a
tenhais ganho com o vosso trabalho, há uma coisa que não deveis esquecer nunca:
é que tudo promana de Deus, tudo retorna a Deus. Nada vos pertence na Terra,
nem sequer o vosso pobre corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens
materiais. Sois depositários e não proprietários, não vos iludais. Deus vo-los
emprestou, tendes de lós restituir; e ele empresta sob a condição de que o
supérfluo, pelo menos, caiba aos que carecem do necessário.
Um dos vossos amigos vos empresta certa quantia. Por
pouco honesto que sejais, fazeis questão de lá restituirdes escrupulosamente e
lhe ficais agradecido. Pois bem: essa a posição de todo homem rico. Deus é o amigo
celestial, que lhe emprestou a riqueza, não querendo para si mais do que o amor
e o reconhecimento do rico. Exige deste, porém, que a seu turno dê aos pobres,
que são, tanto quanto ele, seus filhos.
Ardente e desvairada cobiça despertam nos vossos corações
os bens que Deus vos confiou. Já pensastes, quando vos deixais apegar
imoderadamente a uma riqueza perecível e passageira como vós mesmos, que um dia
tereis de prestar contas ao Senhor daquilo que vos veio dele? Olvidais que,
pela riqueza, vos revestistes do caráter sagrado de ministros da caridade na
Terra, para serdes da aludida riqueza dispensadores inteligentes? Portanto,
quando somente em vosso proveito usais do que se vos confiou, que sois, senão
depositários infiéis? Que resulta desse esquecimento voluntário dos vossos
deveres? A morte, inflexível, inexorável, rasga o véu sob que vos ocultáveis e
vos força a prestar contas ao Amigo que vos favorecera e que nesse momento
enverga diante de vós a toga de juiz.
Em vão procurais na Terra iludir-vos, colorindo com o
nome de virtude o que as mais das vezes não passa de egoísmo. Em vão chamais
economia e previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao
que não é senão prodigalidade em proveito vosso. Um pai de família, por
exemplo, se abstém de praticar a caridade, economizará, amontoará ouro, para,
diz ele, deixar aos filhos a maior soma possível de bens e evitar que caiam na
miséria. E muito justo e paternal, convenho, e ninguém pode censurar. Mas será
sempre esse o único móvel a que ele obedece? Não será muitas vezes um
compromisso com a sua consciência, para justificar, aos seus próprios olhos e
aos olhos do mundo, seu apego pessoal aos bens terrenais? Admitamos, no
entanto, seja o amor paternal o único móvel que o guie. Será isso motivo para
que esqueça seus irmãos perante Deus? Quando já ele tem o supérfluo, deixará na
miséria os filhos, por lhes ficar um pouco menos desse supérfluo? Não será,
antes, dar-lhes uma lição de egoísmo e endurecer lhes os corações? Não será
estiolar neles o amor ao próximo? Pais e mães, laborais em grande erro, se
credes que desse modo granjeais maior afeição dos vossos filhos. Ensinando-lhes
a ser egoístas para com os outros, ensinais-lhes a sê-lo para com vos mesmos.
A um homem que muito haja trabalhado, e que com o suor de
seu rosto acumulou bens, é comum ouvirdes dizer que, quando o dinheiro é ganho,
melhor se lhe conhece o valor. Nada mais exato. Pois bem! Pratique a caridade,
dentro das suas possibilidades, esse homem que declara conhecer todo o valor do
dinheiro, e maior será o seu merecimento, do que o daquele que, nascido na
abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas, também, se esse homem,
que se recorda dos seus penares, dos seus esforços, for egoísta, impiedoso para
com os pobres, bem mais culpado se tornará do que o outro, pois, quanto melhor
cada um conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, tanto mais propenso
deve sentir-se em aliviá-las nos outros.
Infelizmente, sempre há no homem que possui bens de
fortuna um sentimento tão forte quanto o apego aos mesmos bens: é o orgulho.
Não raro, vê-se o arrivista atordoar, com a narrativa de seus trabalhos e de
suas habilidades, o desgraçado que lhe pede assistência, em vez de acudi-lo, e
acabar dizendo: "Faça o que eu fiz." Segundo o seu modo de ver, a
bondade de Deus não entra por coisa alguma na obtenção da riqueza que conseguiu
acumular; pertence-lhe a ele, exclusivamente, o mérito de a possuir. O orgulho
lhe põe sobre os olhos uma venda e lhe tapa os ouvidos. Apesar de toda a sua
inteligência e de toda a sua aptidão, não compreende que, com uma só palavra,
Deus o pode lançar por terra.
Esbanjar a riqueza não é demonstrar desprendimento dos
bens terrenos: é descaso e indiferença. Depositário desses bens, não tem o
homem o direito de os dilapidar, como não tem o de os confiscar em seu
proveito. Prodigalidade não é generosidade: é, frequentemente, uma modalidade
do egoísmo. Um, que despenda a mancheias o ouro de que disponha, para
satisfazer a uma fantasia, talvez não dê um centavo para prestar um serviço. O
desapego aos bens terrenos consiste em apreciá-los no seu justo valor, em saber
servir-se deles em benefício dos outros e não apenas em benefício próprio, em
não sacrificar por eles os interesses da vida futura, em perdê-los sem murmurar,
caso apraza a Deus retirá-los. Se, por efeito de imprevistos reveses, vos
tornardes qual Job, dizei, como ele: "Senhor, tu mos havias dado e mós
tiraste. Faça-se a tua vontade." Eis ai o verdadeiro desprendimento. Sede,
antes de tudo, submissos; confiai naquele que, tendo-vos dado e tirado, pode
novamente restituir-vos o que vos tirou. Resisti animosos ao abatimento, ao
desespero, que vos paralisam as forças. Quando Deus vos desferir um golpe, não
esqueçais nunca que, ao lado da mais rude prova, coloca sempre uma consolação.
Ponderai, sobretudo, que há bens infinitamente mais preciosos do que os da
Terra e essa ideia vos ajudará a desprender-vos destes últimos. O pouco apreço
que se ligue a uma coisa faz que menos sensível seja a sua perda. O homem que
se aferra aos bens terrenos é como a criança que somente vê o momento que
passa. O que deles se desprende é como o adulto que vê as coisas mais
importantes, por compreender estas proféticas palavras do Salvador: "O meu
reino não é deste mundo."
A ninguém ordena o Senhor que se despoje do que possua,
condenando-se a uma voluntária mendicidade, porquanto o que tal fizesse
tornar-se-ia em carga para a sociedade. Proceder assim fora compreender mal o
desprendimento dos bens terrenos. Fora egoísmo de outro gênero, porque seria o
indivíduo eximir-se da responsabilidade que a riqueza faz pesar sobre aquele
que a possui. Deus a concede a quem bem lhe parece, a fim de que a administre
em proveito de todos. O rico tem, pois, uma missão, que ele pode embelezar e
tornar proveitosa a si mesmo. Rejeitar a riqueza, quando Deus a outorga, é
renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, gerindo-a com critério.
Sabendo prescindir dela quando não a tem, sabendo empregá-la utilmente quando a
possui, sabendo sacrificá-la quando necessário, procede a criatura de acordo
com os desígnios do Senhor. Diga, pois, aquele a cujas mãos venha o que no
mundo se chama uma boa fortuna: Meu Deus, tu me destinaste um novo encargo;
dá-me a força de desempenhá-lo segundo a tua santa vontade.
Aí tendes, meus amigos, o que eu vos queria ensinar
acerca do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei o que expus, dizendo:
Sabei contentar-vos com pouco. Se sois pobres, não invejeis os ricos, porquanto
a riqueza não é necessária à felicidade. Se sois ricos, não esqueçais que os
bens de que dispondes apenas vos estão confiados e que tendes de justificar o
emprego que lhes derdes, como se prestásseis contas de uma tutela. Não sejais
depositário infiel, utilizando-os unicamente em satisfação do vosso orgulho e
da vossa sensualidade. Não vos julgueis com o direito de dispor em vosso
exclusivo proveito daquilo que recebestes, não por doação, mas simplesmente
como empréstimo. Se não sabeis restituir, não tendes o direito de pedir, e
lembrai-vos de que aquele que dá aos pobres, salda a dívida que contraiu com
Deus. - Lacordaire. (Constantina, 1863.)
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
FEB. Capítulo 16. Item 14.