segunda-feira, 5 de março de 2012

O Conhecimento do futuro

 

 

Capítulo IX

O conhecimento do futuro

O fatalismo. – O determinismo e o livre arbítrio.
– O problema do tempo e do espaço
.

“A Verdade está ao lado do Destino como potência diretriz.”
“Versos dourados de Pitágoras” 

O que acabamos de apreciar relativamente ao “já visto” é a introdução natural do que se seguirá.
Estudaremos agora as observações, examinando as vistas premonitórias que estabelecem o conhecimento do futuro.
Publiquei, com este título, em La Revue [1] de 1º de março e de 1º de abril de 1912, os principais documentos comprobatórios de que, em certas condições, o futuro foi visto e conhecido de antemão. Diversos escritores prosseguiram, desde aquela publicação, no mesmo assunto (e reproduziram esses documentos sem sempre terem a cortesia de citarem o meu trabalho, minúcia aliás insignificante). O que aqui nos interessa particularmente é saber que o futuro foi visto, descrito, anunciado muitas vezes com precisão pormenorizada, e que, por conseguinte, existe no ser humano um princípio psíquico dotado de faculdades independentes das propriedades da matéria, uma alma diferente do corpo.
Apontarei em primeiro lugar o fato de premonição em sonho, que já publiquei em 1911, nos Anais das Ciências Psíquicas, e em 1912, na mesma revista, do que dou aqui a curiosa narração.
O Sr. Frederic Passy, o venerável membro do Instituto, cuja longa carreira foi tão honrosamente consagrada ao apostolado do pacifismo contra a imbecilidade guerreira humana,[2] veio visitar-me um dia de janeiro de 1911, subindo com galhardia os meus cinco andares, apesar dos seus 89 anos. Foi uma das suas últimas visitas, e a relação que me levou merecia realmente a sua escolha.
“Não a encontrei – disse-me ele – na sua obra O Desconhecido e tenho a certeza de que o interessará, pois procede de um escritor escrupuloso, um homem de integridade incontestável, o quaker Etienne de Grelet. Dou ao senhor a narrativa, tal como a transcrevi da relação da sua viagem à Rússia. Durante a sua permanência em S. Petersburgo, a Condessa Toutschkoff contou ao quaker viajante o seguinte:
Uns três meses antes da entrada dos franceses na Rússia, o general, seu marido, estava com ela no seu domínio de Toula. Achando-se num hotel, em cidade desconhecida, ela sonhou que seu pai entrara, levando o filho único pela mão e dizendo-lhe estritamente:
A tua felicidade acabou. Teu marido caiu. Caiu em Borodino.
Acordou muito perturbada, mas, vendo seu marido junto dela, compreendeu que sonhava e adormeceu novamente.
O mesmo sonho se repetiu e ela sentiu tanta tristeza que levou muito tempo a recuperar a serenidade.
O sonho voltou pela terceira vez. Experimentou tão grande angústia que despertou seu marido, perguntando-lhe:
– Onde é Borodino?
Ele não o sabia. Durante a manhã, ambos, com seu pai, se puseram a procurar esse nome no mapa, sem encontrá-lo. Borodino era então lugar muito obscuro; mas tornou-se depois afamado, pela batalha sangrenta que se feriu nas suas cercanias. Entretanto, a impressão causada na condessa era profunda e grande sua inquietação... O teatro da guerra era longe então, mas rapidamente se aproximou.
Antes da chegada dos exércitos franceses a Moscou, o General Toutschkoff foi posto à testa do exército russo de reserva. Certa manhã o pai da condessa, levando seu filho pela mão, entrou no quarto do hotel em que ela se hospedara. Estava triste, como a condessa o tinha visto em seu sonho, e dizia-lhe:
Ele caiu, ele caiu em Borodino.
A condessa viu-se, como no sonho que tivera, no quarto, cercada dos mesmos objetos.
Seu marido foi, efetivamente, uma das numerosas vítimas da renhida batalha que se pelejou perto do rio de Borodino, que deu o seu nome a uma aldeia.
Frederic Passy.”
Este sonho premonitório, tão tragicamente preciso, é certamente dos mais característicos.
Pode-se supor que fosse arranjado mais tarde no espírito da narradora? Não, pois a sua realização a tinha impressionado com inesquecível emoção, e três meses antes da realização ela e o morto haviam procurado o lugar no mapa da Rússia.
Apresenta todos os caracteres de autenticidade.
Fiz observar então que se a morte do general em Borodino (batalha da Moscowa) foi vista alguns meses antes, tal morte e tal batalha eram pois inevitáveis. E, neste caso, que é feito do livre arbítrio? Napoleão devia, portanto, empreender fatalmente a campanha da Rússia e não era responsável por ela. A liberdade e a responsabilidade humanas não são mais do que ilusão?
Analisaremos daqui a pouco estas conseqüências seguramente perturbadoras. Que pensar? O fatalismo parece estar em desacordo com todos os progressos da Humanidade. Mas é erro pensar que o fatalismo e o determinismo sejam idênticos.
A esse respeito, uma rapariga de Nápoles, Srta. Vera Kunzler, dirigiu-me, em abril de 1917, uma carta angustiosa sobre algumas frases minhas, concernentes a fatos incontestáveis da visão do futuro, suplicando-me que lhe explicasse como é possível conciliar estes fatos de observação, dos quais me declaro fiador, com o livre arbítrio, o nosso sentimento de liberdade e a nossa responsabilidade. Ela insistia tanto, porque estava sob a impressão de uma emoção profunda, produzida por trágica predição que se havia realizado recentemente, na sua própria família.
Respondi-lhe que o fatalismo e o determinismo são duas doutrinas absolutamente diferentes uma da outra, e que convém não confundi-las, como geralmente se faz. Na primeira, o homem é um ser passivo que aguarda os acontecimentos que são inevitáveis. Na segunda, pelo contrário, o homem é ativo e faz parte das causas que atuam. Não se vê o que deve acontecer, mas o que acontecerá. Ocorre sempre alguma coisa. É essa coisa que vemos, sem que isso seja fatal. É certo que a distinção é muito sutil; mas pareceu-me que a sua juvenil alma de 17 anos, livre e pura de qualquer idéia preconcebida, e de uma finura que, na sua correspondência, me pareceu extremamente delicada, perceberia tal distinção, prestando-lhe a atenção necessária. Pedi-lhe ao mesmo tempo que me desse a conhecer a predição realizada e que tanto a havia perturbado. Eis a sua carta, transcrita textualmente:
“Nápoles, 10 de junho de 1917.
Caro grande mestre:
Quanta alegria me deu a sua amável carta! Foi recebida com duplo agrado, primeiro pela sua procedência e segundo porque me trouxe um pouco de luz sobre as idéias que se agitavam no meu cérebro. Refleti longamente sobre essa carta e compreendi bem o que nela teve a bondade de me explicar: o que acontecerá pode ser visto, mas não é fatal. Experimentei um alívio imenso, pois acabrunhava-me a idéia de que não somos senhores de nada, nem mesmo de nossos pensamentos.
Deseja saber, caro mestre, qual foi o acontecimento que me levou a crer na predestinação? Vou contá-lo o melhor que puder.
Era na primavera de 1910, há sete anos. Estávamos em relações muito íntimas com uma senhora alemã, chamada Helena Schmid. Era médium de força extraordinária, e como minha mãe se interessava muito pelas sessões espíritas, pedi-lhe um dia que realizasse uma dessas sessões.
Eu era então uma criança de dez anos e ia para a escola; por isso não assisti a tal sessão; mas minha mãe e a nossa velha criada contaram-me muitas vezes a cena.
Bastou que Helena Schmid pousasse as mãos ligeiramente na mesa para que ela logo balançasse com violência. Conheço a maneira de comunicar com os espíritos – se é que os há. Quando a mesa, grande e maciça mesa de sala de jantar, que a simples força muscular não teria conseguido erguer, bateu as pancadas regulamentares, anunciando a presença de um espírito, a mamã pediu que lhe dissesse o nome: pelas letras do alfabeto se revelou, dizendo chamar-se Anton. A médium ignorava inteiramente tal nome e também não sabia de quem se tratava, quando ele foi chamado. Direi que se tratava de Anton Fiedler, austríaco, o primeiro marido de minha tia, irmã de minha mãe, que havia desposado em segundas núpcias Adolfo Riesbeck. Helena Schmid desconhecia até a existência de toda essa gente. Como esse Anton Fiedler havia sido o parente mais próximo de minha tia, a mamã pensou em solicitar-lhe algumas revelações acerca do futuro dela. À primeira pergunta, que foi a seguinte: “Riesbeck conservará sempre a sua fortuna?”, o espírito respondeu redondamente: “Não”.
– Quantos anos levará a perdê-la?
A mesa bateu duas pancadas:
– Dois anos.
Minha mãe perguntou depois:
– Quanto tempo sobreviverá ele à perda de sua fortuna?
A resposta foi nítida e precisa:
– Cinco anos!
A mamã desejou então saber como morreria, mas o espírito afirmou apenas que meu tio morreria repentinamente. Às perguntas se morreria de doença, de desastre, suicídio, de naufrágio, ou vítima de um crime, ele respondeu:
– Não.
Foi impossível saber qual seria a sua morte: ninguém pensava então numa guerra, motivo pelo qual se não formulou tal interrogação. A única coisa que se conseguiu mais de Anton Fiedler foi a resposta a esta pergunta:
– Quando falecer Riesbeck, que idade terá seu filho?
E a mesa respondeu nitidamente:
– 17 anos.
Em seguida, tudo acabou.
Abstenho-me de qualquer comentário; relato-lhe simplesmente o que se deu. Minha mãe não contou tudo isso desde logo a minha tia, com receio de que o dissesse a seu marido. De resto, ele não acreditava em tal. Infelizmente, tudo quanto havia sido predito se realizou com a mais terrível exatidão: na primavera de 1912, isto é, exatamente dois anos após a profecia, meu tio Riesbeck perdeu a sua fortuna numa arriscada especulação na Bolsa; pouco tempo depois a mamã prevenia minha tia, que se achava e ainda se acha em Genebra, da predição e contou-lhe a segunda parte da mesma.
Minha tia respondeu-lhe como o teria feito qualquer outra pessoa no seu lugar: que essa predição não passava de uma tolice que nenhuma atenção merecia.
Entretanto, também se realizou a segunda parte da profecia: a mamã e eu conversávamos muitas vezes acerca daquela sessão e eu dizia-lhe: “Se o espírito falou verdade, meu tio morrerá no começo de 1917.”
Pois Adolfo Riesbeck morreu no front em 12 de fevereiro de 1917, com uma bala na cabeça, repentinamente, quando meu primo Mário completava os seus dezessete anos! E esta morte que o espírito não pôde precisar, que não era produzida por doença, nem por desastre, nem por crime, era a morte na guerra, na qual ninguém pensava então.
Remeto-lhe, incluso, um fragmento da carta que minha pobre tia nos escreveu, quando morreu seu marido. É escrita em alemão, mas creio que conhece esta língua e pedirei a minha mãe para a assinar.
Espero que essa estranha predição leve um tributo modesto às suas pesquisas. Aguardo o grande prazer da leitura do livro que prometeu publicar depois da guerra, sobre a Previsão do futuro.
Sou feliz em saber que nem tudo é fatal, pois o pensamento que me atormentava era este: a morte de meu querido tio estava predestinada ao tempo em que nem havia sido ainda fundida a bala que teria de matá-lo.
Perdoe-me por ter abusado do seu precioso tempo. É justamente por temer que seja importuna que muitas vezes me abstenho de escrever-lhe, como era meu desejo. Mas fui muito feliz com o ensejo de responder, por minha vez, à sua pergunta. Tudo quanto lhe disse é a absoluta verdade.
Cumprimento-o, mestre, respeitosamente e “caramente” (palavra italiana que decerto compreenderá).
Sua afilhada da Sociedade Astronômica de França,
Vera Kunzler.”
“Certifico que a narração de minha filha é exata em todos os seus pormenores.
Viúva E. Kunzler.”
Seria supérfluo para os nossos leitores acrescentar qualquer comentário a esta narração, que não deixará a menor dúvida acerca da sua completa sinceridade. Os sentimentos de angústia profunda e de infinita curiosidade expressos na primeira carta que me fora dirigida pela narradora já me haviam convencido disso mesmo. Temos aí um exemplo típico de previsão do futuro.
Quanto ao seu acordo, em aparência paradoxal, com o determinismo, falaremos dele.
Esses fatos não podem, para o futuro, ser negados. Toda negativa seria prova flagrante de ignorância ou de outro estado d’alma, ainda menos desculpável.
A esse respeito, como a premonição do General Toutschkoff e os meus comentários tivessem sido publicados por La Revue de março e abril de 1912, Frederic Passy escreveu-me a seguinte carta:
“Neuilly, 27 de abril de 1912.
Meu caro Flammarion:
Sou dos que vacilam em acreditar na possibilidade das premonições de que fala nos seus artigos, porque me parecem a negação da liberdade que deixa de existir se os fatos são absolutamente determinados de antemão. Entretanto, já lhe forneci um desses fatos, que mencionou.
Devo dizer-lhe que encontrará um outro no livro do Sr. G. Lenôtre, O Marquês de la Rouerie e a Conjuração Bretã de 1790-1793.
A Sra. de Sainte Aulaire, filha do Sr. de Noyau, um dos conjurados, anunciou certa manhã a seu pai, que não quis acreditá-la, que ia ser preso e levado a Paris perante o tribunal revolucionário, mas que conseguiria salvar-lhe a vida. O fato é atestado não só por ela – falecida muito mais tarde – mas por seu filho, o qual tinha então quinze anos, e que foi uma personagem importante na Restauração e no reinado de Luís Filipe (membro da Academia Francesa). Esta premonição [3] realizou-se pontualmente.
O senhor decidirá o que devemos pensar deste fato.
Frederic Passy.”
A questão da liberdade humana merece analisada.
Lemos sempre com verdadeiro prazer estético as obras do nosso grande geômetra Laplace, um dos maiores e mais penetrantes espíritos de que a França se pode orgulhar e ao mesmo tempo um dos nossos mais puros escritores.
Eis o que ele escrevia acerca do livre arbítrio, no seu Ensino filosófico sobre as probabilidades (2ª edição, de 1814):
“Todos os acontecimentos, mesmo aqueles que, pela sua pequenez, parecem não se relacionar com as grandes leis da Natureza, são seqüência tão necessária dessas leis como as revoluções do Sol. Devido à ignorância dos vínculos que os associam ao sistema inteiro do Universo, fizeram-nos depender das causas finais ou do acaso, segundo aconteciam ou se sucediam com regularidade, ou sem ordem aparente; mas estas causas imaginárias foram sucessivamente retardadas com os limites de nossos conhecimentos, e desaparecem por inteiro diante da sã filosofia, que não vê nelas senão a expressão da ignorância em que estamos das causas verdadeiras.
Os acontecimentos atuais têm, com os precedentes, uma conexão fecunda no princípio evidente de que uma coisa não pode existir sem causa que a produza. Este axioma, conhecido sob o nome de princípio da razão suficiente, estende-se às ações, mesmo as mais indiferentes. A mais livre vontade não pode, sem motivo determinante, dar-lhe origem; porque, se dadas as circunstâncias de serem exatamente as mesmas duas posições, ela atuasse numa e deixasse de o fazer na outra, a sua escolha era um efeito sem causa: seria então, como diz Leibnitz, o acaso cego dos epicuristas. A opinião contrária é uma ilusão do espírito que se convence de que se determinou por si mesmo e sem motivos, perdendo de vista as razões fugitivas da escolha da vontade nas coisas indiferentes.
Devemos, pois, encarar o estado presente do Universo como o efeito do seu estado interno, e como a causa do que vai continuar. Uma inteligência que por um instante conhecesse todas as forças que animam a Natureza e a respectiva situação dos seres que a compõem, se fosse bastante extensa para submeter esses dados à análise, encerraria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e tanto o futuro como o passado seriam o presente a seus olhos. O espírito humano oferece um fraco esboço dessa inteligência na perfeição que soube imprimir à Astronomia.” [4]
Discutiremos em breve esse raciocínio.
Costuma-se atribuir a Laplace a sua paternidade, mas todos os pensadores o haviam enunciado antes dele e nada mais natural: é quase La Palice. A primeira edição deste livro sobre as probabilidades é um curso de Laplace na Escola Normal, fundada pela Convenção, em 1795.
Ora, em 1787 Emmanuel Kant escrevia na sua Crítica da Razão Prática:
“Sob o ponto de vista do tempo e da sua ordem regular, se pudéssemos penetrar a alma de um homem tal como se manifesta por atos tanto internos quanto externos, conhecer todas as causas, mesmo as mais leves, e levar em conta ao mesmo tempo todas as influências externas, poderíamos calcular a futura conduta desse homem com a mesma certeza com que calcularíamos um eclipse da Lua ou do Sol.” [5]
Kant também não é o criador desse raciocínio. Ele é encontrado nos autores mais antigos, até nos romanos, até em Cícero, por exemplo. No seu tratado sobre a Adivinhação,[6] ele faz expor por seu irmão, Quintus, a conexão entre a visão do futuro e a fatalidade. Diz ele:
“Para se dar conta da adivinhação é preciso remontar à Divindade, ao destino, à Natureza. A razão obriga-nos a confessar que tudo se governa pelo destino. Chamo destino ao que os gregos chamam uma ordem, uma série de causas ligadas entre si, produzindo efeitos. Eis esta verdade perpétua cuja fonte está na própria eternidade. Depois disso, nada há no futuro cuja natureza não contenha já as causas eficientes. Deste modo, o destino seria a causa eterna de todas as coisas, causa que explica os fatos realizados, os fatos presentes e os fatos vindouros. É assim que por meio da observação se pode saber quais sejam, muitas vezes, as conseqüências de cada causa. É sem dúvida esse encadeamento de causas e de efeitos que a inspiração e os sonhos revelam.
Acrescentarmos que, se pudesse existir um mortal capaz de conceber a conexão de todas as causas, sendo tudo regulado pelo destino, nunca erraria. Com efeito, aquele que conhecesse as causas dos acontecimentos não poderia deixar de conhecer todo o futuro.”
Esse raciocínio é impecável em si mesmo e, repito-o, é quase uma verdade do Sr. de La Palice. Que não há efeitos sem causa é evidente. Mas a conclusão da fatalidade ou do determinismo necessário não tem a mesma evidência que esta reflexão de simples bom senso.
Apesar da minha profunda admiração por Laplace, nas obras de quem fui educado, confesso que não posso partilhar a sua negativa absoluta do livre arbítrio. Os meus leitores já sabem o que escrevi sobre esse ponto escabroso, nas minhas Memórias.
“A vontade mais livre não pode atuar sem motivo determinante.” Sem dúvida. Mas, entre as causas em ação na escolha, a nossa própria personalidade existe, e isto não é uma causa sem importância.
Dir-se-á que essa personalidade agiu de acordo com o motivo predominante e provém de causas anteriores. É incontestável. Todavia ela existe, como o nosso caráter, e o que há talvez ainda nisto de mais capital, de mais irrecusável, é que nos sentimos muito bem, que examinamos, pesamos, discutimos conosco quando o caso vale a pena, e que decidimos, apreciando a nossa responsabilidade.
Há algumas vezes, creio-o, uma balança cujos pratos estão em perfeito equilíbrio e que vai pender sob o menor peso; mas esse pequeno peso pode ser a nossa fantasia, o nosso capricho, a nossa vontade, o nosso desejo de contrariar um efeito previsto, numa palavra, justamente o exercício da nossa liberdade. Ilusão do nosso espírito? Ninguém está autorizado a afirmar essa hipótese como verdade demonstrada. O princípio da “razão suficiente” está em nós mesmos, quando discutimos em nossa consciência.
Tomar uma decisão de acordo com o motivo predominante não prova que não façamos uma escolha segundo o nosso caráter. A nossa própria vontade está associada a esse caráter, sem nada lhe escravizar. No seu Tratado do Céu, Aristóteles escreve (II, 13): “É o caso de um homem esfomeado e sedento, mas achando-se a igual distância de um alimento e de uma bebida: ficará imóvel forçosamente.” O mesmo diz Dante, no 4º livro do Paraíso: “Intra duo cibi, distanti e moventi. D’un modo prima si morria di fame. – che liber uomo t’un recasse à denti.” Buridan passa por ter feito o mesmo raciocínio, pondo um asno no lugar do homem.
Ninguém duvida de que nem o homem nem o asno morrerão de fome. Não há só mecânica na Natureza.
* * *
Haverá incompatibilidade absoluta entre a previsão do futuro e o livre arbítrio? É o que se diz geralmente e o que os escritores antigos afirmam com os modernos.
O autor da História da Adivinhação na Antigüidade, Bouché Leclercq, do Instituto, escreve que um futuro incerto dependente de vontades livres não se harmoniza com a idéia de leis fixas sugerida pelo espetáculo da ordem universal, e que o instinto popular, antecipando-se às teorias filosóficas, foi levado invencivelmente a considerar o futuro como inelutável (I, pág. 15); que o futuro só pode prever-se por ser inevitável (idem, pág. 16); que há um “conflito sem solução entre a presciência e a liberdade, e que uma suprime a outra” (idem, pág. 16). Sêxtus Empíricus demonstrou que devendo ser os acontecimentos vindouros, ou necessários ou fortuitos, ou produzidos por agentes livres, a adivinhação era inútil no primeiro caso e impossível nos dois outros (idem, pág. 79).
No Ensaio sobre o livre arbítrio, Schopenhauer escreve também: “Se não admitimos a necessidade rigorosa de tudo quanto acontece em virtude de uma causalidade que encadeia todos os acontecimentos sem exceção, toda previsão do futuro é impossível e inconcebível.” (pág. 124).
Evidentemente, acredita-se, em geral, que há incompatibilidade, contradição insolúvel, entre a presciência e o livre arbítrio, porque se confunde “presciência divina” com necessidade. É um erro.
Nas conversas de Goethe com Eckermann, podemos ler, com data de 13 de outubro de 1825:
“Que sabemos nós, com todo o nosso espírito, do ponto a que chegamos até agora?
O homem não nasceu para resolver o problema do mundo, mas para procurar dar-se conta da extensão do problema e manter-se depois no limite extremo do que pode conceber.
As suas faculdades não são capazes de medir os movimentos do Universo, e é trabalho inútil o de querer abranger o conjunto das coisas com a inteligência, quando ela tem apenas um ponto de vista restrito. A inteligência do homem e a inteligência da divindade são duas coisas muito diferentes.
Logo que concedemos ao homem a liberdade, acabamos com a onisciência de Deus; e se, por outro lado, Deus não ignora o que farei, não sou livre de fazer coisa diversa da que ele sabe. Cito este dilema apenas como um exemplo do pouco que sabemos, e para mostrar que não é bom tocar nos segredos divinos.
Nestes termos, só devemos exprimir, entre as verdades mais elevadas, aquelas que podem servir ao bem do mundo. As outras, teremos de guardá-las conosco, mas semelhantes aos doces clarões de um sol velado, elas podem espalhar e espalharão o seu brilho sobre o que fazemos.”
Goethe não ousou prosseguir. Por que? Examinemos.
Os acontecimentos e as circunstâncias conduzem-nos com mais amplitude do que em geral se pensa. Que cada um analise com atenção os atos de sua vida e reconhecê-lo-á sem custo. Nosso livre arbítrio limita-se a um quadro muito diminuto de atividade. “O homem agita-se e Deus o conduz”, diz um antigo adágio. Não é inteiramente exato. Deus, ou o Destino, Fatum como lhe chamavam os latinos, deixa-nos alguma liberdade.
O provérbio contrário do precedente – todo provérbio tem um outro que lhe é oposto – diz por sua vez: Deus ajuda os que trabalham.
Sim, o homem agita-se e os acontecimentos conduzem-no; mas somos, ao mesmo tempo, os obreiros de nosso próprio destino.
Em suma, a verdade não está na metafísica dos filósofos, dissertando sobre a fatalidade do destino, mas no bom senso vulgar e prático que se resume no adágio universal, nas cinco palavras que acabo de mencionar.
A minha explicação procura essencialmente manter-se no domínio exclusivo dos fatos de observação positiva, sem recorrer a nenhuma hipótese. Quando nos dizem que o nosso sentimento do livre arbítrio é uma ilusão, trata-se de afirmativa hipotética. Estou sentado à minha escrivaninha, pergunto a mim mesmo o que vou fazer, comparo, raciocino e decido-me por isto ou por aquilo. Declaram-me que sou vítima de circunstâncias alheias à minha vontade. Sustento, pelo contrário, que, se não raciocinasse, deixaria correr os acontecimentos, e que a liberdade consiste justamente em escolher o que nos parece preferível. Isto não é absoluto, é relativo; somos constantemente contrariados em nossos projetos; há mesmo dias em que tudo corre mal; isto é muito imperfeito, mas é a nossa sensação incontestável, e não temos o direito de suprimi-la, substituindo-a por uma hipótese. Ela é evidente como o dia. É uma exterioridade, pode-se dizer; sim, uma exterioridade como o Sol, uma paisagem, uma árvore, uma poltrona, uma casa, coisas que conhecemos pelas impressões que nos dão; mas esta aparência confunde-se com a realidade.
Há aí um fato de observação diária, constante, legítima, irrecusável.
Oh! certamente, muitas vezes somos passivos e não tomamos nenhuma resolução radical. Objeta-se que, quando discutimos conosco e que nos decidimos, após madura reflexão, é sempre segundo o motivo predominante, de maneira que a nossa pretensa liberdade é comparável a uma balança, da qual um dos pratos desce segundo os pesos que nele se puserem. É incontestável que, quando raciocinamos pausadamente, pesando o pró e o contra, resolvemos a favor do que nos parece preferível. Ora, é justamente nisso que intervém o nosso raciocínio e nenhum sofisma suprimirá em nós esta convicção. Cremos mesmo que, no caso contrário, não seríamos razoáveis e, quando às vezes somos levados a agir em desacordo com as nossas opiniões, sentimos que a isso somos relativamente obrigados.
Pelo que se refere à vontade arbitrária, a seguinte declaração que Juvenal põe na boca de uma mulher imperiosa não será ainda o melhor argumento?
Sic volo; sic jubeo; sit pro ratione voluntas.
(Assim quero; assim o ordeno; a minha vontade é a minha única razão.)
“Porque assim nos apraz”, diziam igualmente Luís XIV e Luís XV, com um orgulho que devia perder a realeza.
Replicar-me-ão, sem dúvida, que somos dotados de certa liberdade de ação, que podemos escolher, resolver segundo o motivo preponderante; mas onde fica o livre arbítrio absoluto?
Não será cada um de nós levado segundo o seu temperamento, os seus gostos, as suas idéias, as suas preferências e também segundo as circunstâncias e a conexão dos acontecimentos? Como nos libertaremos dessa escravidão?
Iniciamos as obras, grandes ou pequenas, sem sabermos aonde nos levarão. Que cada um examine a sua vida e verifique quanto é fraca a sua liberdade pessoal.
Somos arrastados num turbilhão. O homem agita-se e o destino impele-o. Esse destino é o espírito universal, do qual nada mais somos do que minúsculas rodagens. Mas também somos espíritos.
Livre arbítrio absoluto? Não. Livre arbítrio relativo.
A nossa liberdade é, sem contradição, muito menos extensa do que parece aos espíritos superficiais. A marcha cósmica do Universo conduz-nos.
Vivemos sob a influência do estado astronômico, e meteorológico, do calor, do frio, do clima, da eletricidade, da luz, do meio que nos cercam, das heranças ancestrais, da nossa instrução, do nosso temperamento, da nossa saúde, da potência da nossa vontade, etc. A nossa liberdade é comparável à de um passageiro do navio que o leva da Europa para a América. A sua viagem é antecipadamente traçada. A sua liberdade não vai além da amurada do navio. Pode passear sobre o tombadilho, conversar, ler, fumar, dormir, jogar, etc.; mas não pode sair da sua casa móvel. O esboço de nossa existência é traçado de antemão, como o movimento dos órgãos de qualquer máquina, e temos um papel a desempenhar, com um certo jogo individual. Essa liberdade condicionada é, certamente, muito estreita, mas ainda assim existe.
Suponhamos que jantais em casa de um amigo. Oferecem-vos certos pratos, preferireis vinho branco ou vinho tinto, Borgonha ou Bordéus, cerveja ou água pura e sabeis perfeitamente que podeis escolher à vontade, tomando em linha de conta o vosso estômago e servindo-vos de vossa razão.
Se observarmos com cuidado, num momento qualquer, os nossos menores atos, verificamos, que a nossa liberdade é em extremo limitada, que aquilo que resolvemos fazer de manhã, ao acordar, vai ser dificultado por mil causas, mas que entretanto a nossa intenção principal se realizará mais ou menos e que a nossa escolha atuará.
O que se dá em grande, dá-se igualmente em pequeno: os nossos atos mais importantes são determinados conjuntamente pelas circunstâncias e pela nossa vontade.
Pode-se admitir a vista premonitória do futuro sem por isso comprometer o princípio do livre arbítrio e da responsabilidade humana. O presente nunca se detém: continua-se constantemente pelo futuro. Ocorre sempre qualquer coisa; nem por isso é fatal, visto a vontade humana tomar parte no encadeamento dos fatos e essa vontade gozar de uma liberdade relativa; o que ela resolve torna-se real, mas poderia não resolver nada; o futuro é a continuação do passado e não há diferença essencial entre a vista de um e de outro. Esse fato não impede absolutamente o admitir que a vontade humana seja uma das causas de ação nos acontecimentos. Poderia suceder outra coisa diversa da que sucede e é esta outra coisa que veríamos nas premonições.
O que acontece é o produto do encadeamento das causas, seja uma força vingativa que manda fuzilar ou guilhotinar os seus adversários, como se viu em 1793 e 1871, em Paris (e como se tem visto um pouco em toda parte, em nosso lindo planeta), seja a ação de um filantropo que intervém no meio de uma revolução para dirigir a sua marcha ou pôr termo aos seus excessos. O que sucede não impede a existência do bom e do mau, do tirano e da vítima, do justo e do injusto, do brutal e do ponderado, do inteligente e do idiota, do carnívoro e do pacifista, dos exploradores e dos explorados, dos ladrões e dos roubados.
Perceber, por processo qualquer, o que deve acontecer pela sucessão dos efeitos e das causas é coisa que se pode conciliar com a existência de todas as causas atuantes, mesmo a liberdade.
O futuro não é mais misterioso do que o passado. Se calculo hoje que o movimento da Lua em torno da Terra e o movimento da Terra em torno do Sol conduzirão o nosso globo e o seu satélite em linha reta (Sol-Lua-Terra) com a França na passagem da sombra da Lua, em 11 de agosto de 1999, às dez horas e meia da manhã, e que um eclipse total do Sol será observado ao norte de Paris durante dois minutos, não haverá mais mistério nessa predição do que no cálculo retrospectivo do eclipse total do Sol que passou sobre Perpignan, em 8 de julho de 1842. Quando se deu esse eclipse de 1842, que se tornou célebre pelas observações de Arago, na sua cidade natal, tinha eu quatro meses e onze dias; quando se der o de 11 de agosto de 1999, terei morrido há muito tempo, o que não tem a mínima importância: o que é o futuro hoje para mim, para vós, para os vivos atuais, será para outros o presente e tornar-se-á depois o passado.
Há de objetar-se que a assimilação dos fatos astronômicos aos acontecimentos humanos não é integral, visto não existir nenhuma liberdade nos movimentos dos astros e ser aí absoluto o fatalismo. Mas pode-se responder que se o livre arbítrio é uma das causas atuantes, nem por isso deixam de produzir-se os seus efeitos.
Que tudo o que acontece seja o resultado necessário das causas em ação, não há dúvida, mesmo os crimes mais abjetos, mesmo o incêndio de Roma, o martírio dos cristãos por Nero, a violação da Bélgica pelos alemães, o assassínio dos cidadãos, o incêndio de Lovaina, o bombardeio da catedral de Reims e os morticínios vergonhosos da última guerra germânica. Mas cada ator faz parte das causas operosas e é parcialmente responsável. Os acontecimentos são uma série mecânica, mesmo a condenação de Joana d’Arc à fogueira pelo bispo Cauchon, sob a acusação de feitiçaria, e a sua canonização, depois, por outros bispos; mesmo o químico Lavoisier, o astrônomo Bailly, o filósofo Condorcet, o poeta André Chénier, vítimas de ferozes e obcecados revolucionários. Tudo isso é motivado por causas determinantes, mas não é fatal e poderia ter sido diferente o curso dos acontecimentos. Daí à conclusão de que não existem as responsabilidades há um abismo. O Imperador da Alemanha, desencadeando a guerra de 1914 e causando a morte de doze milhões de seres humanos, não se parece com S. Vicente de Paulo; nem um nem outro são autômatos, escravos do fatalismo.[7]
Suprimir a liberdade seria suprimir toda a responsabilidade, todo o valor moral, igualar o mau ao bom, ao que se opõe a nossa certeza íntima. Nesse caso deveríamos renunciar aos nossos pensamentos mais claros e evidentes.
Cada um de nós tem diante de si a sua sorte desconhecida; mas produzir-se-ão todos os acontecimentos, apesar do livre arbítrio mais ou menos desenvolvido de cada indivíduo, e mesmo por causa desse livre arbítrio. Na vida humana todos os homens atuam, em diversos graus, e disso resultam as conseqüências.
Há loucos e ajuizados (talvez haja mesmo mais doidos do que gente de juízo; certamente, a razão não domina, sobretudo na direção dos Estados).
Apesar de termos diante de nós a nossa sorte desconhecida, cada um de nós faz o seu destino; atuamos segundo as nossas faculdades, as nossas possibilidades, a nossa roda, a nossa hereditariedade, a nossa instrução, o nosso juízo, o nosso espírito, o nosso coração, e sabendo muito bem, aliás, que gozamos de uma liberdade relativa e que podemos tomar resoluções. Somos os autores da nossa sorte.
Por mais que fizermos, a hora de nossa morte já está marcada. Por quê? Porque os acontecimentos seguir-nos-ão, incluindo os nossos caprichos, as nossas sugestões, as nossas fraquezas, as nossas imprudências, os nossos erros, e também tudo o que ocorrer em torno de nós. Procedemos naturalmente segundo as nossas possibilidades e nossas mentalidades. Não se fará mentir um homem leal; não se tornará um avarento em generoso. A ação de cada um, limitada às suas faculdades, não deixa de existir e há casos em que semanas e meses de reflexão são necessários para tomar uma decisão. Todavia os atos encadeiam-se e a circunstância de percebê-los de antemão não impede esse encadeamento.
Parece-me que o laborioso analista dos fenômenos psíquicos, Bozzano, definiu racionalmente também esta aparente antinomia, escrevendo: “Nem livre arbítrio nem determinismo absolutos durante a existência encarnada do espírito, mas liberdade condicionada.
Podeis ainda objetar, talvez, que, se acontece o que deve necessariamente acontecer, é supérfluo atormentarmo-nos para termos bom êxito em qualquer coisa, em trabalharmos para vencermos num concurso, em procurarmos um médico para um doente, em lutarmos contra a adversidade, etc. Esta objeção prova justamente a nossa ação na ordem das coisas. Por mais fatalista que penseis ser, ireis, com mais ou menos pressa, procurar o médico, servir à pátria contra o invasor, chamar os bombeiros para apagar um incêndio, combater o fogo que uma faísca tiver ateado nos vossos papéis, no gabinete de trabalho, etc. Possuís uma razão, fazeis uso dela. Isso não demonstra, de modo algum, que careceis dela e que sois autômatos.
A prova melhor que temos ainda da nossa liberdade, das nossas faculdades de livre escolha, de determinações conscientes, existe no sentimento íntimo, absoluto, de que os possuímos, e contra ele não pode prevalecer nenhum sofisma. Sentis muito bem que podeis fazer o gesto que mais vos agrade. Embora vos digam que o capricho de levantar o dedo, por exemplo, é precedido de uma série de idéias anteriores, esse capricho mesmo é real e provém unicamente do nosso espírito dotado de liberdade mental.
O futuro é determinado pelas circunstâncias, incluindo a liberdade humana, incluindo mesmo os rancores de um animal maltratado injustamente, e mil influências particulares nas quais nem sequer se pensa.
A personalidade humana faz parte das causas em ação na marcha dos acontecimentos terrestres. Eis a solução do problema exposto por Cícero, Santo Agostinho, Laplace e seus êmulos.
* * *
Há aqui uma distinção muito sutil a fazer, para não confundir o encadeamento inevitável dos acontecimentos humanos com o fatalismo. O que acontece não é fatal, apesar de ser a seqüência necessária das causas. Um homem leva um murro, pelas costas, de um transeunte que passa apressadamente, no meio da multidão; podia não levá-lo, ou por não ter saído de casa naquele dia ou por não seguir naquela direção, e por até o seu agressor se não cruzar com ele. Os fatos ter-se-iam passado por outra forma e o acontecimento seria diferente: uma visão premonitória teria visto, da mesma forma, o que aconteceria, sem que essa vista anterior provasse por isso a ausência do livre arbítrio nos dois atores. Cooperamos na marcha dos acontecimentos. É falta de modéstia falar de si mesmo, mas é nisso que somos os melhores juízes e permitir-me-ei apresentar um exemplo que conheço com exatidão: Há longos anos que me esforço para difundir pelo mundo conhecimentos astronômicos, e bastante tenho conseguido. Amigos ilustres da Ciência e do progresso trouxeram-me um concurso precioso na fundação e na organização gradual da Sociedade Astronômica de França. Ninguém poderia apagar de meu espírito as diversas lutas que tive de sustentar e convencer-me de que não houve nisso um trabalho pessoal; a esse respeito sei alguma coisa e todos os trabalhadores, todos os organizadores estão no mesmo caso. A vontade não é uma palavra vã. Cada um pode fazer as mesmas considerações, pelo que lhe toca. Nós procedemos, e o futuro é feito das nossas ações consecutivas. isto não é fatalismo. É, mesmo, o contrário. O fatalismo é a doutrina dos sonolentos, os fatalistas aguardam os acontecimentos, o que eles supõem que há de produzir-se, apesar de tudo. Ora, nós trabalhamos e cooperamos na marcha dos acontecimentos. Somos ativos e não passivos e nós mesmos construímos o edifício do futuro. Não se deve confundir determinismo com fatalismo. Este representa a inércia, o primeiro representa a ação.[8]
O fatalista é o oriental, o turco; o determinista é o europeu. Há um abismo entre as duas civilizações.
Ver o futuro é ver simplesmente o que acontecerá. Não é prever, é ver. Na Astronomia, calculamos a órbita de um cometa, por exemplo, a órbita normal, teórica, a curva elíptica, parabólica ou hiperbólica, no espaço. Mas pode suceder que o cometa passe na vizinhança de um grande planeta e seja influído pela sua atração. Esta perturbação modificará o seu curso e a nossa vista do futuro sobre a posição do cometa não será exata e precisa, se não tomarmos em conta esta influência perturbadora.
Todas as influências atuam nos acontecimentos. A do homem merece a mesma atenção que as perturbações planetárias, ainda que frua de uma certa independência.
Não é pois impossível conciliar o nosso sentimento de liberdade com o conhecimento premonitório dos futuros acontecimentos.
Suponhamos um observador postado no cume de uma serrania, ao pé da qual se alongue vasta planície. Ele vê um homem trilhar o caminho que o leva a uma localidade e adivinha que esse viajante vai tratar, no lugar mencionado, de um negócio qualquer. Em que contradiz a liberdade do indivíduo o fato de ver a sua ação?
O livre arbítrio do ator não está em contradição com a vista do observador, a visão antecipada de um acontecimento não influi sobre ele. Da montanha em que supomos estar, vemos, por exemplo, dois comboios correrem velozmente um contra o outro, devido a um engano de agulha. Está iminente um desastre. A nossa vista, a nossa previsão nada têm com isso; o fato de ver é inteiramente estranho ao fato do acontecimento.
Ver os acontecimentos desenrolarem-se no futuro como se vê os que se desenrolaram no passado não obsta a que as causas determinantes atuem, incluída a vontade humana.
Nunca vos aconteceu, ao ler um romance, adivinhar exatamente o seguimento da história? E a maior habilidade do escritor não consistirá em dar uma tal aparência de verdade às suas personagens imaginários e de interessar tão vivamente nisso o leitor que ele se impaciente por conhecer a seqüência?
Por exemplo, o príncipe dos contistas, Alexandre Dumas, ofereceu-nos a leitura de José Bálsamo, e da sua continuação, O Colar da Rainha. Percorrendo a lista das inúmeras produções desse autor, podeis notar o título da Condessa de Charny. Pois bem, sem haverdes lido este último romance, sem saberdes quem é essa condessa, lendo o capítulo XII de O Colar da Rainha e o quadro que faz Maria Antonieta das belas qualidades do Sr. de Charny em presença de Andréa de Taverney, pálida e comovida, vereis, repentinamente, que a Srta. de Taverney, apaixonada, virá a ser a Condessa de Charny. Adivinhastes o futuro.
Certos dissidentes poderiam observar-me que as personagens de Alexandre Dumas são bonecos que ele manobra segundo lhe convém e que a minha comparação nenhum valor tem, pois poderia ser interpretada para demonstrar justamente o contrário da minha tese e levar-nos-ia a concluir que os homens e as mulheres, em vez de serem indivíduos livres, são apenas bonecos na mão do autor, chame-se ele Deus, Destino ou Acaso.
Essa objeção não seria muito sólida. Alexandre Dumas fez certamente o que quis, o que lhe agradou, o que lhe pareceu mais interessante para os seus leitores, e a sua imaginação pessoal teve o maior papel no arranjo dos seus romances.
As suas personagens, imaginárias ou reais, Andréa de Taverney, a Condessa de Charny, o bailio de Suffren e seu sobrinho Charny, Maria Antonieta, o Cardeal de Rohan, representam na cena, segundo os caprichos do seu prodigioso talento de conteur. Conheci Alexandre Dumas, com sua gorda face e a sua cabeleira emaranhada, e vejo-o rir às gargalhadas, com o seu bom riso, se algum psicólogo da Escola viesse opor o grave determinismo às suas divertidas fantasias e declarar-lhe que foi forçado fatalmente a escrever o que imaginou.
* * *
Desse conjunto de considerações, podemos, segundo me parece, tirar uma conclusão indiscutível. Os fatos de visão espontânea dos acontecimentos futuros são em tão grande número e de precisão tal, que a hipótese das coincidências fortuitas é hipótese sem valor e a rejeitar absolutamente. Essa vista subliminal não é duvidosa para os que estudaram suficientemente a questão. Atualmente não tem explicação científica, mas não anula a liberdade.
Apesar da aparência, e seja qual for o pensamento dos filósofos que não fizeram exame suficientemente aprofundado dessa questão especial, a vista do futuro não está em contradição com a liberdade humana e o livre arbítrio, por mais extensão que lhe queiram dar. Vê-se o que acontecerá, suprime-se o tempo, que, de resto, não existe em si, sendo resultado transitório dos movimentos do nosso planeta. É, pois, simplesmente uma aparência que se suprime. Vê-se o que acontecerá como se pode ver o que aconteceu. Se a vontade, o capricho, as circunstâncias tivessem conduzido a outra coisa, seria essa outra coisa que se teria visto. O conhecimento do futuro não compromete nem a liberdade nem o conhecimento do passado.
No espaço absoluto o tempo não existe. Se a Terra girasse duas vezes mais depressa, os dias seriam reduzidos à metade do que são. Essas medidas são relativas, não fundamentais.[9] Não confundamos a sucessão dos acontecimentos, o que constitui “o tempo” para as nossas impressões humanas, com o absoluto. A Astronomia convida-nos a essa distinção. Olhai, de noite, por exemplo, Sírio, Vega e Aldebaran e vê-las-eis, não como justamente são, mas como não tornarão a ser, como foram: a primeira há 8 anos, a segunda há 25 e a terceira há 32. O nosso presente atual coexiste com o passado delas. Vimos no céu, em 22 de fevereiro de 1901, um incêndio sideral que se produziu em torno de 1551. Certas estrelas que observamos neste momento já não existem. O tempo atual de Júpiter e de Saturno não é o da Terra.
Os metafísicos costumam associar o espaço e o tempo que, com efeito, têm certas relações entre si, e atribuem-lhes propriedades comuns. É um erro. O espaço existe em si. É absoluto, infinito, eterno, mesmo no vácuo, pois o vácuo ainda é espaço puro. O tempo, pelo contrário, não existe em si. É criado pelos movimentos dos astros e a sucessão das coisas. Se a Terra fosse imóvel, se os astros não fossem dotados de qualquer movimento, não haveria tempo; mas haveria sempre espaço. No espaço absoluto, entre os mundos, o tempo não existe.
Ocupei-me mais de uma vez dessa questão, de 50 anos a esta parte, com os nossos eminentes filósofos contemporâneos,[10] e pude verificar que na sua maioria preferem sacrificar a possibilidade da previsão do futuro à liberdade. Não adivinharam que possa existir um acordo entre as duas. Espero que esse acordo seja estabelecido aqui. De qualquer forma, não se devem, não se podem negar fatos de observação. Voltemos a esses fatos.
Foi só em 1912 que se publicou uma tradução francesa dos escritos do filósofo alemão Schopenhauer sobre o “magnetismo animal e a magia”, dados à luz por ele em Francfort, em 1836, assim como os relativos aos espíritos e aos sonhos premonitórios aparecidos em Berlim, em 1851. Eis o que se pode ler nessa obra:
“Os sonhos anunciam freqüentemente acontecimentos de importância, mas às vezes também coisas insignificantes, cuja realização não deixa de merecer a atenção do pensador. Convenci-me disso por uma experiência irrecusável. Quero comunicar essa experiência, porque ela põe ao mesmo tempo em plena luz a rigorosa necessidade do que acontece, mesmo do que é mais acidental.
Certa manhã escrevia, com grande atenção, longa e muito importante carta de negócios, em inglês. Chegado ao fim da terceira página, tomei, em vez do areeiro, o tinteiro, e derramei-o sobre a carta; a tinta escorreu da escrivaninha para o soalho. A criada, acudindo ao toque da campainha, tomou um balde d’água e pôs-se a lavar o soalho para tirar as manchas. Enquanto procedia a essa operação, disse-me:
– Sonhei esta noite que tirava manchas de tinta deste sítio, esfregando o soalho.
– Isso não é verdade – respondi-lhe.
– É verdade, sim senhor, e já o contei à outra criada que dorme comigo.
Chega, por acaso, essa outra criada, de 17 anos talvez, para chamar a que lavava o soalho. Dirigi-me a ela e perguntei-lhe:
– Que foi que ela sonhou esta noite?
– Não sei – respondeu.
Eu acudi:
– Entretanto, ela contou-te o sonho, ao despertar.
A rapariga então exclamou:
– Ah sim, ela havia sonhado que tiraria uma grande mancha de tinta deste soalho.
Essa história, cuja autenticidade absoluta garanto, põe fora de dúvida a realidade dessa espécie de sonhos. Não é menos digna de atenção pelo fato de tratar-se aqui de um ato que se pode qualificar de involuntário, pois que se produziu inteiramente contra a minha vontade, em conseqüência de uma insignificante inadvertência da minha mão. E entretanto, esse ato era tão necessário e tão inevitavelmente determinado que muitas horas antes o seu efeito existia, no estado de sonho, na consciência de um outro. É aqui que aparece claramente a verdade da minha proposição: Tudo quanto acontece, acontece necessariamente.” [11]
Não seria classificada esta narrativa no número dos meus documentos positivos, deixando-a na categoria dos duvidosos (pela suspeição que merece o testemunho dos criados, visto muitos sentirem um verdadeiro prazer em enganar os seus patrões), se Schopenhauer não fosse o autor e não o tivesse apresentado em apoio de suas convicções sobre a necessidade. Declara-se convencido da veracidade das suas duas criadas, e para ele a realidade do sonho premonitório não oferece dúvida alguma.
Mas erra na interpretação. Não era obrigado a entornar o tinteiro. Viu-se o fato porque aconteceu.
Essa história da criada do filósofo alemão lembra-me a de uma outra criada, contada na revista Uebersinnliche Welt, de Berlim, de agosto de 1904, que teve visão análoga.
“O Sr. Buchberger, Conselheiro de Justiça, achava-se em Obermais. Uma manhã, pelas cinco horas, teve um sonho que lhe mostrou a sua casa de Olmutz e a sua criada com os vestidos em chamas, sobre os quais alguém lançava um jato de água; depois viu o corpo da infeliz, cuja pele, entretanto, estava branca.
Pouco tempo depois, o Sr. Buchberger voltou para casa e, ao chegar, sua mulher contou-lhe que a criada morrera, em conseqüência de queimaduras. No mesmo dia em que ele teve o sonho, mas pelas 10 horas da manhã, como a criada quisesse aquecer um verniz, este inflamara, pegando-lhe fogo ao vestuário. Socorrida quando corria no quarto, lançada ao chão, conseguiu-se apagar o lume com água; mas, levada ao hospital, morria alguns dias depois.”
Deve-se observar que esse sonho ocorreu pelas 5 horas da manhã, ao passo que o desastre aconteceu às 10 horas. É, sensivelmente, o caso de Schopenhauer.
A narração é assinada pelo Sr. Buchberger, Conselheiro de Justiça, em Graz-Rucherlberg.
O fato capital que deve chamar a nossa atenção e tomar aos nossos olhos caráter da certeza é simplesmente a afirmação paradoxal de que o futuro, que ainda não existe e que se originará do encadeamento de uma série de pequenas causas consecutivas, pode entretanto ver-se como se estivesse já realizado.
Não é somente nos sonhos premonitórios que pode ser visto o futuro, mas também em certos estados d’alma difíceis de definir. Um dos exemplos mais curiosos dessa visão precisa do futuro, que conheço, é a observação relatada pelo meu sábio colega do Instituto Metapsíquico, o Dr. Geley, cujos trabalhos são bem conhecidos de meus leitores. Ei-lo textualmente:[12]
“Em 27 de junho de 1894, pelas nove horas da manhã, o Dr. Gallet, então estudante de Medicina em Lião, trabalhava no seu quarto, em companhia de um camarada de estudos, atualmente o Dr. Varay, médico também em Annecy.
Gallet estava então muito ocupado e preocupado com a preparação do exame próximo: primeiro exame de doutorando, e não pensava senão nele.
Particularmente, não se interessava em absoluto pela política, olhava distraidamente os jornais, e só incidentalmente havia conversado, nos dias precedentes, sobre a eleição do presidente da República que se devia realizar naquele dia. O congresso eleitoral reunir-se-ia pelas 12 horas, em Versalhes.
De repente, Gallet, entregue ao seu trabalho, foi imperiosamente distraído por um pensamento importuno. Uma frase inesperada impunha-se ao seu espírito com força tal, que não pôde deixar de escrevê-la imediatamente no seu caderno. Esta frase era, textualmente: O Sr. Casimir Périer é eleito Presidente da República por 451 votos.
Isto se passava, repito-o, antes da reunião do congresso. Observar-se-á que, entretanto – fato curioso –, a frase de que o Dr. Gallet conserva a lembrança mais nítida indica o presente e não o futuro.
Gallet, atônito, chama o seu camarada, Varay, e apresenta-lhe o papel no qual acabava de escrever.
Varay leu, encolheu os ombros e, como o seu amigo insistia, muito interessado, declarando que acreditava na premonição, pediu-lhe, com certa dureza, que o deixasse trabalhar sossegado.
Depois do almoço Gallet saiu para assistir às aulas, na Faculdade. No caminho, encontrou dois outros estudantes, os Srs. Bouchet, atualmente médico em Cruseilles (Alta Sabóia), e Deborne, ao presente farmacêutico em Thonon. Anunciou-lhes que Casimir Périer seria eleito por 451 votos. Apesar dos risos e das mofas dos seus camaradas, continuou a afirmar, por diversas vezes, a sua convicção.
Ao sair da Faculdade, os quatro amigos juntaram-se e foram tomar refresco num café vizinho.
Nesse momento, chegaram os vendedores de edições especiais de jornais, anunciando o resultado da eleição presidencial e gritando:
O Sr. Casimir Périer foi eleito por 451 votos.”
Poderíamos, certamente, acreditar na palavra do Dr. Geley, mas ele entendeu que devia comprovar a fidelidade da sua narrativa com confirmações irrecusáveis e atestados de testemunhas:
1º atestado, do Dr. Varay, antigo interno dos hospitais de Lião;
2º atestado, do Sr. Deborne, farmacêutico em Thonon;
3º atestado, do Dr. Bouchet, médico em Cruseilles.
Ninguém pode, pois, contestar esse fato.
Deve-se observar que a eleição de Casimir Périer, que só teve uma maioria de 28 votos,[13] foi inesperada, e que se contava mais com a eleição do Sr. Brisson ou a do Sr. Dupuy.
Ver aqui também uma simples coincidência fortuita seria ir além, certamente, dos limites de um cepticismo razoável. Esses fatos fortificam-se uns com os outros. Se houvesse apenas um, insulado, perdido na soma das possibilidades, poderia duvidar-se. Mas um número tal como o que estabelecemos aqui deixa nos espíritos a certeza absoluta da realidade dessas previsões, por mais inexplicáveis que sejam, no estado atual da Ciência. Neste caso, também o vidente involuntário viu o que aconteceria; mas a eleição de Casimir Périer não era fatal, por tal circunstância. Cada um dos 845 votantes concorreu certamente para isso muito mais do que Schopenhauer, entornando o seu tinteiro; cada um agiu segundo o seu critério. Esse exemplo é típico contra a fatalidade.
Continuemos o nosso “livre” exame.
O Sr. César de Vesme, o erudito diretor dos Anais das Ciências Psíquicas, comunicou-me, em 1901, a seguinte extraordinária predição:
“Nos primeiros dias do ano de 1865, um certo Vicent Sassaróli foi residir em Sarteano, povoação de 6.000 habitantes.
Nesse país existia excelente banda de música composta de 34 executantes, da qual era presidente o Sr. Joseph Frontini, que, tendo de exilar-se por causa da política, convidou-o a encarregar-se da sua direção.
O Sr. Sassaróli aceitou o oferecimento, sendo imediatamente apresentado aos músicos na sala em que se faziam os ensaios, no terceiro andar de uma casa que pertencia ao Cônego D. Bacherini. Em seguida ao ensaio e na presença de toda a assistência, anunciou ao Sr. Frontini que a sala onde se encontravam ruiria juntamente com o edifício, das águas-furtadas ao rés-do-chão. Acrescentou que lhe parecia ver os escombros da casa sepultarem e esmagarem todos os assistentes e até ele próprio.
A estas palavras, entreolharam-se, espantados, todos os presentes, perguntando-se se o novo diretor gracejava ou se não estaria maluco. O Sr. Sassaróli, imperturbável, insistiu, precisando mesmo o dia e a hora em que se daria a catástrofe.
Ante tais afirmativas, os assistentes não duvidaram mais do estado mental do professor. Toda a gente se retirou, troçando-o.
Como é natural, essa esquisita história espalhou-se por toda a região, fazendo rir às gargalhadas.
O Sr. Frontini então, vendo que Sassaróli tinha caído no ridículo e persuadido igualmente de que a sua idéia fixa o arrastaria à loucura, fez quanto estava em suas mãos para o chamar à realidade. De acordo com o Cônego Joseph Bacherini, mandou examinar cuidadosamente, por arquitetos competentes, o edifício, desde o teto até os alicerces, afirmando eles que a casa não apresentava o menor indício de deterioração. Escudado por essa opinião, o Sr. Frontini procurou Sassaróli e aconselhou-o a não insistir na sua louca predição, desejando-lhe uma vida tão longa como a da sólida construção de que se tratava. Foi trabalho perdido, porque o Sr. Sassaróli redarguiu que não podia aceitar tal voto, pois se o fizesse não teria mais do que quatro dias de existência.
Uma tal obstinação só serviu para radicar as suspeitas da loucura do maestro. Começaram então a vigiá-lo com o receio de que, de um para outro instante, praticasse qualquer tolice.
Nos cafés, nas reuniões, não se falava senão dessa parlapatice que divertia toda a região.
Enfim, chegou o momento. À noite, como tivessem de repetir os ensaios, os músicos reuniram-se, conforme o hábito, na sala e, enquanto esperavam o diretor, fartaram-se de o troçar. O Sr. Sassaróli não se fez demorar, mas não quis ouvir falar de trabalho nessa noite, de tal forma se sentia agitado à medida que a hora se aproximava. Tanto fez que conseguiu que todos os assistentes saíssem. Descendo as escadas assentes sobre arcos maciços, o Sr. Sassaróli, que havia tomado a dianteira, não cessava de recomendar:
– Devagar, desçam devagar, porque o nosso peso poderia apressar o desastre.
Calculem-se as zombarias, os motejos, as gargalhadas dessas 34 pessoas persuadidas de que seguiam um louco e de que se prestavam a uma comédia, descendo uns após outros a longa fila de degraus. Por fim, encontraram-se na rua. Alguns instantes depois, e precisamente à hora anunciada, a casa derruía de alto a baixo.”
Pode-se calcular a impressão que esse acontecimento produziu em toda parte.
O relatório donde extraímos esta breve narrativa foi escrito pelo Sr. Joseph Frontini, cujo pai, presidente da Municipalidade, foi um dos primeiros a felicitar o Sr. Sassaróli no dia seguinte ao da catástrofe.
Além disso, três testemunhos: 1º- de todos os membros da família onde residia o Sr. Sassaróli; 2º- do guarda do teatro; e 3º- da família que habitava a casa contígua ao teatro, certificam o fato.
Em boa verdade, como duvidar-se ainda diante desse acontecimento tão absolutamente afirmativo? Não seria o caso de aplicar-se aos incrédulos a estigmatização bíblica: “Oculos habent et non vident; aures habent et non audiunt.”? (“Eles têm olhos mas não vêem; têm ouvidos mas não ouvem.) Negar, negar sempre, negar apesar de tudo, que é que isso prova?
Pois bem! não nos mostremos satisfeitos; não é ainda suficiente para o nosso caso. Eis outros exemplos. Um deles, o mais estupendo de clarividência que eu conheço, um dos mais estranhos e dos mais característicos, devido à lucidez magnética, é o que foi relatado pelo Dr. Alphonse Teste, no seu Manual prático do magnetismo universal. Essa obra não é de hoje, foi publicada em 1841; mas não vale menos por isso, porque, como diz Molière, o tempo nada vale para o caso. É esse acontecimento verdadeiramente fantástico:
“No dia 8 de maio último, numa sexta-feira, eu magnetizava a Sra. Hortence M. Nesse dia aquela senhora estava de admirável lucidez. Encontrava-me só com ela e o marido. Parecia-me preocupada, sobretudo com o seu futuro pessoal. Entre outras coisas inesperadas, disse-nos o seguinte:
– Estou grávida de 15 dias; mas não chegarei ao termo e isso me causa um desgosto inigualável. Terça-feira próxima, 12 do corrente, qualquer coisa me causará medo; e levarei uma queda da qual resultará um aborto.
Confesso que, apesar de tudo o que já tinha visto, um dos pontos dessa profecia me revoltou.
– Medo de quê, minha senhora? – perguntei, com uma expressão de interesse que estava longe de ser simulada.
– Não sei.
– Onde lhe sucederá isso? Onde sofrerá a queda?
– Não o posso explicar; não sei absolutamente nada.
– E não haverá qualquer meio de evitar tal coisa?
– Nenhum.
– E se nós, no entanto, não a abandonássemos?
– Seria o mesmo.
– Ficará bastante doente?
– Sim, durante três dias.
– Pode dizer-nos ao certo o que sentirá?
– Terça-feira, pelas 3 horas e meia, logo depois de um susto, sentirei um desfalecimento de alguns minutos. Assaltar-me-ão a seguir violentas dores nos rins que durarão o dia todo e se prolongarão pela noite adentro. Quarta-feira de manhã terei uma hemorragia. A perda sanguínea aumentará rapidamente, tornando-se muito abundante. Não haverá, contudo, motivo para receios, porque não morrerei disso. Quinta-feira de manhã sentir-me-ei muito melhor, poderei mesmo levantar-me quase todo o dia, mas à tarde, aí pelas 5 horas e meia, terei nova hemorragia, seguida de delírio. A noite de quinta para sexta-feira será boa; mas na sexta-feira à tarde perderei a razão.
A Sra. Hortence H. calou-se e, sem todavia acreditarmos em tudo quanto nos disse, sentíamo-nos de tal forma impressionados que não pensamos mais em prosseguir o interrogatório. Entretanto, seu marido, profundamente emocionado, perguntou-lhe, com indescritível ansiedade, se ela se conservaria louca por muito tempo.
– Três dias – respondeu, perfeitamente calma.
Em seguida acrescentou com doçura cheia de graça:
– Vamos! não vale a pena afligires-te; não ficarei louca nem morrerei. Apenas sofrerei, mais nada.
Acordamos a Sra. Hortence e, como sempre sucede, não se recordou de coisa alguma. Ficando só com o marido, recomendei-lhe expressamente que guardasse segredo, sobretudo com sua esposa, a propósito dos acontecimentos que, embora quiméricos, poderiam concorrer para a oprimir, se deles tivesse conhecimento. Principalmente no interesse da Ciência, tornava-se importante que ela os ignorasse. O Sr. H. prometeu calar-se. Possuía suficientes provas do seu caráter para saber que cumpriria a sua palavra. No que me dizia respeito, tinha escrupulosamente tomado apontamentos de todas as circunstâncias preditas e delas tive ocasião, no dia seguinte, de dar parte ao Dr. Amadeu Latour.
Ao chegar a terça-feira fatal, só uma coisa me preocupava: o medo da Sra. Hortence.
Quando entrei em sua casa, ela almoçava com o marido e pareceu-me muito bem disposta.
– Meus bons amigos – disse-lhes ao entrar –, hoje ficarei convosco, se isso os não contraria.
– Com o maior prazer – respondeu-me a Sra. Hortence –; mas, com uma condição: é que o senhor não falará demasiadamente de magnetismo.
– Não falarei mesmo nada, se consentir, no entanto, em adormecer durante dez minutos.
A Sra. Hortence concordou e, algum tempo depois do almoço, adormeci-a.
– Minha senhora, como se sente?
– Muito bem, mas não por muito tempo.
– Ora essa! Por quê?
Ela repetiu a frase sacramental de sexta-feira, a saber: que entre as três e quatro horas, teria medo de qualquer coisa e levaria uma queda, da qual lhe resultaria uma hemorragia.
– Que é que lhe provocará medo?
– Não o sei dizer.
– No entanto... tente...
– Não, não sei absolutamente nada.
– Onde se encontra o objeto que lhe causará medo?
– Não sei.
– Não há nenhum meio de se subtrair a essa fatalidade?
– Nenhum.
– Esta tarde tenho a certeza de provar-lhe o contrário.
– Esta tarde, doutor, o senhor estará inquieto pelo estado da minha saúde, porque me encontrarei muito doente.
Diante disso, não tinha o que responder. Era necessário esperar; foi o que fiz.
Depois de despertada a Sra. Hortence não se recordou de coisa alguma; o rosto, atemorizado pelas visões do seu sono, retomou a serenidade habitual. Conversou e gracejou como antes de adormecer, sem qualquer idéia preconcebida, recomeçando com os seus ditos espirituosos tão naturais em si, e que, como ninguém, sabe empregar. Eu é que me sentia numa situação de espírito que não saberei descrever; perdia-me em conjunturas e hipóteses que por momentos abalavam a minha fé; duvidava de tudo; cheguei a duvidar de mim mesmo. Decididos, como estávamos, a não abandoná-la um segundo, observávamos os seus menores movimentos com atenção, chegando a fechar hermeticamente as portadas das janelas, com receio de que qualquer incidente passado na rua, ou nas casas próximas, concorresse para realizar a profecia. Tocaram a campainha; um de nós foi ver quem batia.
Pouco depois das 3 horas e meia da tarde, a Sra. Hortence, que estava espantada com os cuidados de que era objeto e não compreendia a causa das nossas precauções, disse-nos, erguendo-se da cadeira em que a tínhamos feito sentar:
– Os senhores permitem que me esquive um momento a esta incompreensível solicitude?
– Aonde vais? – exclamei com um ar de inquietação que não consegui dissimular.
– Por amor de Deus, doutor, julga acaso que eu tenho idéias de suicidar-me?
– Certamente não, mas...
– Diga; o quê?
– O quê? Na verdade, sou indiscreto, mas é que a sua saúde interessa-me.
– Nesse caso, doutor – exclamou ela, sorrindo – mais uma razão para me deixar sair...
Calei-me. O motivo era tão natural que não insisti. Entretanto, o meu amigo quis ir até ao fim e disse à esposa:
– Dás-me licença que te acompanhe?
– Com que, então, é uma aposta?
– Precisamente; é uma aposta que fizemos os dois e estou certo de que a ganharei, embora a senhora faça o possível para que eu a perca.
A Sra. Hortence olhou-nos intrigada. E, aceitando o braço do marido, saiu da sala, rindo com gosto.
Eu também ria, apesar de experimentar não sei que pressentimento que me dizia que o momento decisivo tinha chegado.
De tal forma essa idéia me preocupava, que eu não pensava mesmo em voltar à sala e fiquei como de guarda à entrada da porta, onde não era precisamente o meu lugar.
De repente, ouviu-se um grito agudo, seguido do ruído da queda de um corpo no soalho. Subi as escadas a correr. À porta da retraite, o meu amigo segurava nos braços a esposa desfalecida.
Tinha sido ela realmente que havia gritado e o ruído que ouvira fora motivado pela queda. Precisamente no momento em que deixava o braço do marido para entrar na retraite, um rato, onde há vinte anos não se tinha visto um único, surgiu de repente, causando-lhe um terror tão vivo e tão súbito que caiu desamparadamente, sem que seu marido tivesse tempo de segurá-la. Tudo se passou depois como fora previsto. Diante de semelhantes fatos, quem ousará – acrescentou o Dr. Teste – opor limites ao possível e definir a vida humana?”
Não se pode pôr em dúvida a veracidade com que fala o autor.
De tal forma ficou impressionado por essa pasmosa clarividência, que não podemos deixar de nos sentir impressionados também. Negar tudo, como tantas vezes sucede, seria negar toda a história da Humanidade.
Não tinha razão em afirmar que era este um dos casos mais extraordinários de toda a série que estudamos neste momento e cuja variedade tão rica é? Aqui, a objeção banal do acaso fica sem aplicação possível. Quando muito, poder-se-ia supor que a imaginação doente da narradora produziu isso tudo por auto-sugestão subconsciente e que foi ela quem criou e viu o que lhe ia acontecer; mas é uma hipótese insustentável!
Hipótese, além disso, diametralmente oposta ao caso precedente da derrocada do teatro e aos seguintes.
Não se deve, certamente, aceitar sem prevenção as narrativas de pessoas que afirmam ter previsto acontecimentos extraordinários: há, no entanto, testemunhos que se não podem pôr em dúvida; está neste caso o do meu amigo, Albert de Rochas, que nos referiu um fato, aliás banal mas bastante curioso, acontecido ao nosso célebre cirurgião, Barão Larrey, que lho contou. Numa só noite sonhou com quatro números da loteria. No dia seguinte, como tivesse pressa de fazer as suas visitas, pediu à Sra. Larrey para comprar os bilhetes com esses números. Qual não foi, porém, a sua contrariedade, quando regressou a casa, ao saber que os números haviam sido premiados – e que o seu pedido fora esquecido!
É inaceitável atribuir esta coincidência ao acaso; o jogador tinha 2.555.189 probabilidades contra si.
Um número, vá; dois ainda passa; mas quatro!
Sabemos hoje que o futuro pode ser previsto.
Este fato é tão interessante como os precedentes. Eu conheci o Barão Larrey, homem de sociedade e tão distinto como sábio leal. O seu testemunho é o de uma pessoa honesta.
Notemos, a esse propósito, que os exemplos que eu aqui submeto à atenção imparcial dos meus leitores têm as mais diversas origens. Não se trata apenas de sonhos premonitórios, de profecias no estado sonambúlico, de quiromancia, de cartomancia ou de qualquer outras séries especiais. Todas as formas de atividade cerebral estão representadas, como todas as situações sociais e todos os países. Não se poderia, pois, objetar com alguma influência sugestiva de qualquer gênero que seja.
Continuemos o nosso estudo.
Um dos exemplos mais trágicos de sonhos premonitórios de mortes, que conheço, é o do Dr. de Sermyn, sobre a morte de seu próprio filho. Vejamos a sua narrativa pessoal:[14]
“O meu primeiro filho entrava no seu quarto ano de existência. Eu sentia por ele uma afeição particular, que não senti nunca por nenhum dos meus outros filhos. O seu olhar e o seu sorriso pareciam-me possuir uma expressão angélica e tinha a impressão de que a sua inteligência era excepcional para a sua idade. Era a minha alegria e a minha consolação. O simples pensamento de que o ia ver e falar-lhe, quando entrasse em casa, enchia-me de alegria. Esquecia então todas as minhas fadigas e todos os meus cuidados.
Uma noite, vi em sonho que conservava a criança entre os meus braços, diante do fogão aceso. De repente, não sei como, ela resvalou-me dos braços e caiu no meio das labaredas. Em vez de me apressar a retirá-lo do fogão, deixei-o ficar. O que me forçava a proceder desta maneira era o raciocínio que a mim próprio fazia: se o tiro do fogo, morrerá dentro de alguns dias, no meio da sofrimentos atrozes, em conseqüência das suas queimaduras; se o deixo ficar, morrerá depressa, num minuto, talvez. Em todo caso, não sofrerá por muito tempo.
Estranho, estúpido raciocínio esse, mas no meu sonho essa idéia pareceu-me luminosa e o ato que praticava um dever.
Fechando as grades do fogão, eu ouvia, com angústia inexprimível, a criança agitar-se lá dentro, assando ao fogo. Oh! Deus meu, exclamava, fazei que morra depressa; eu não posso ouvi-lo sofrer assim!
Despertei em sobressalto; um suor frio inundava-me a fronte; o coração batia descompassadamente. Ergui-me a meio da cama e murmurei: “Deus louvado” não foi mais do que um sonho!”
Corri ao quarto do meu filho, que dormia tranqüilamente. A respiração era regular, a epiderme fresca. Era em vão, entretanto, que eu procurava sossegar. De nada valia eu dizer comigo mesmo: “Imbecil, estúpido; trata-se apenas de um sonho; teu filho goza esplêndida saúde. Volta a deitar-te, dorme.” – dizia-me a voz da razão. Voltei para a cama, sem contudo poder dominar a minha inquietação nem conseguir desembaraçar-me do mau pressentimento. A primeira coisa que fiz ao levantar-me de manhã foi examinar meu filho. Ele tagarelava, ria, parecia vender saúde.
“Vai à tua vida; a criança não tem nada – parecia dizer a voz escarninha do meu eu –, o teu sonho é absurdo. Com que então arremessa-se uma criança ao fogo, qual bacorinho, e, para que morra mais depressa, fecham-se as grades da estufa?”
Como adivinhar que a minha mentalidade subconsciente, passiva, que se calava mas que me atormentava, estava dentro da verdade, sabia o que ia suceder?
A criança acordara de manhã alegre, satisfeita como de ordinário. Almoçou com esplêndido apetite. Eu saí tranqüilo.
Regressei a casa por volta do meio-dia. Meu filho estava deitado num canapé, amorrinhado. O pulso batia apressado, a pele queimava, a respiração era agitada. Senti-me inquieto. Minha mulher, que o adivinhou, fez-me várias perguntas às quais respondi, procurando serenar e fazendo esforços para ocultar a minha inquietação. Auscultei cuidadosamente o meu filho, verificando a existência de catarro generalizado nos dois pulmões, e nas bases como que uma crepitação muito leve. Não pude impedir-me de exclamar:
– É grave! É muito grave! Julgo que meu filho está perdido.
Nessa ocasião passava, a cavalo, um médico das nossas relações. Minha mulher precipitou-se para a janela e chamou-o.
– Doutor – exclamou ela assim que entrou –, peço-lhe para examinar o meu filho que está doente. Meu marido diz que ele está perdido.
O Dr. W. estava então no galarim. Era apreciável conversador, suficientemente espirituoso. E no que respeita aos médicos novos, não se mostrava muito amável com eles, parecendo não os ter em grande estima.
Examinou a criança, sorrindo.
– Desde quando está ele doente?
– Apenas há uma hora, doutor – exclamou minha mulher –; ainda esta manhã estava perfeitamente bem.
– E este senhor julga então que está perdido? – respondeu ele, voltando-se para mim – Ah! esses médicos novos! Vejamos – retomou ele, dirigindo-se-me –, o senhor não pode ter uma razão séria para alarmar a tal ponto esta mãe. Há apenas uma hora que a criança adoeceu, e já formulou o seu diagnóstico e o seu prognóstico? Isso não é razoável. Sossegue, minha senhora – ajuntou, dirigindo-se a minha mulher –; deite seu filho na cama, dê-lhe bebidas quentes, cubra-o e faça o possível para que transpire. Voltarei logo.
Eu compreendia perfeitamente o absurdo da minha conduta e como deveria parecer ridículo aos olhos desse médico célebre. Mas podia eu confessar que procedia assim sob a influência de um sonho? Ter-me-ia tomado por louco. Curvei a cabeça sem responder às justas censuras que me fazia; mas, no momento em que o doutor se retirava, exclamei:
– Peço-lhe por favor, doutor, que se não esqueça de voltar logo!
Seria o som da minha voz que o impressionava? O certo é que se deteve, fixou os olhos em mim durante alguns segundos e dirigiu-se lentamente para o doente, que examinou com mais atenção do que da primeira vez.
Certamente dissera consigo: “Aqui está um pai, médico, que parece extremamente inquieto com o estado do filho; terá ele descoberto algum sintoma aterrador que me tenha a mim escapado?”
Depois do exame feito, declarou:
– Ouve-se perfeitamente, aqui e ali, nos dois pulmões, um certo estertor que lhe pareceu, decerto, que uma grave bronco-pneumonia estava em vias de declarar-se. Não nos podemos pronunciar, por enquanto, por uma tal eventualidade. Tudo quanto é lícito dizer agora é que existe um ligeiro catarro pulmonar que pode facilmente dissipar-se dentro de alguns dias. Admitindo mesmo um começo de bronco-pneumonia, que razões tem o senhor para declarar a criança perdida? Nem todas as bronco-pneumonias são mortais. Vá, seja razoável; eu voltarei logo.
Apesar de todos os cuidados, do Dr. W., o estado de meu filho agravou-se de hora para hora. Ao quarto dia sufocava atrozmente.
Vendo-o sofrer tão cruelmente e prevendo o seu fim, eu experimentava as mesmas angústias do sonho. E murmurava ainda: “Meu Deus, fazei que morra depressa; esta agonia, se se prolonga, dá comigo em louco.”
Desde que o sonho me anunciara a morte de meu filho Jorge, nada conseguiu tirar-me a convicção de que o nosso espírito adquire, durante o sono, a faculdade de prever certos acontecimentos futuros. Donde vem, porém, a forma sob a qual se produziu a predição da morte de meu filho? Por que esse fogão, aonde arremessei o meu filho? Por que essa cena tão estranha? De onde veio esse pensamento de fechar as grades do fogão para que ele morresse mais depressa? Tal ato não se concilia de forma nenhuma com o terror que eu sentia, praticando-o. Muitas vezes tenho pensado nisso tudo e a explicação mais racional a que cheguei é a seguinte:
Havia-me deitado demasiadamente tarde nessa noite. Li algum tempo, estirado numa poltrona, diante do fogão, cuja chama eu avivava de vez em quando. Os meus neurônios tinham evidentemente conservado a impressão dos tições em brasa e de um fogão com grade que se podia abrir e fechar facilmente.
É a esta excitação cerebral que, parece-me, deve ser atribuída a ilusão de um fogão em chama no qual se contorcia o meu filho e que eu procurava fechar para abreviar a sua agonia.”
O sonho premonitório põe claramente em evidência a dualidade da nossa mentalidade. Não se quer dar crédito a um sonho, sobretudo quando nos prediz alguma coisa de desagradável. Num caso destes, a razão revolta-se, sem contudo chegar a dominar o sentimento profundo e angustioso, proveniente da subconsciência.
O Dr. de Sermyn ajunta que muitas vezes meditou sobre essa luta entre o seu eu e a subconsciência. Está certo de que o sonho devia cumprir-se fatalmente, enquanto a razão se revoltava contra essa idéia, agarrando-se a uma esperança vacilante com o destroço flutuante a que um náufrago se agarra no mar.
As nossas intuições secretas têm muitas vezes a sua razão de ser e é erro desdenhá-las sem descobrir-lhes a causa. Um pressentimento poderá ser, às vezes, um sonho premonitório esquecido. Seja qual for a explicação que se pretenda dar, o caso observado evidencia-se irrefutável. Esse pai foi impressionado pelo estado fisiológico, então desconhecido, de seu filho e acreditou de antemão na sua morte inevitável. Há aqui uma prova bem característica da faculdade de premonição da alma humana e da existência de um mundo psíquico real, sugerindo a conclusão de que o organismo vital aparente não é tudo. Existe em nós alguma coisa de indefinível que nós próprios não conhecemos.
* * *
Um fato abominavelmente dramático de clarividência, no sonho, exatamente com seis dias de antecedência, referente à morte de seu filho esmagado por um automóvel, no próprio dia em que se bacharelava, depois de brilhantes estudos e gozando de excelente saúde, foi-me contado, em extensa carta, por um dos meus antigos leitores, com a descrição do sonho, dando-lhe todos os pormenores do acidente, a remoção do cadáver, o aspecto dos ferimentos, o desespero da família, exatamente como uma fotografia ou, para dizer melhor, como uma cinematografia.
(Carta 2.218)
A pedido da infortunada família, limito-me aqui a indicar o fato da premonição, sem consignar nomes nem circunstâncias demasiadamente dolorosas. Devo dizer, no entanto, que esse drama real é suficiente para eliminar todas as explicações de pretensas coincidências fortuitas e bastaria para provar que o futuro é entrevisto, algumas vezes, com a mais categórica das precisões. Julgo que os meus leitores estarão todos de acordo comigo, afirmando que a negação desses acontecimentos apenas pode provar a ignorância dos que os negam ou a sua despropositada teimosia.
Um pressentimento premonitório igualmente digno de nota, de um acontecimento a dar-se, foi-me assinalado por um observador atento a esses fenômenos a esclarecer. Escreve ele:
(Carta 985)
“Isto é uma espécie de sonho desperto premonitório, e julgo-me no dever de o assinalar porque pode ser um documento mais a ajuntar àqueles que o senhor reúne para as suas tão importantes investigações. Por isso mesmo avaliará do seu valor. Recentemente, numa reunião, a conversa derivou para os problemas psíquicos de que o senhor tem feito tão documentado estudo, quando uma senhora das nossas relações nos comunicou o seguinte caso:
“Encontrava-me encostada a uma varanda, quando subitamente me vi na rua, de luto pesado, seguindo um coche fúnebre. A impressão que recebi foi tão intensa que nesse dia mesmo fui encomendar um vestido à minha modista, não cessando de pensar comigo mesma: “Vai suceder uma grande desgraça.” quatro dias depois, meu filho, uma criancinha de quatro anos, caiu do alto da escada, morrendo logo.”
Eis o que eu ouvi, pelos meus próprios ouvidos, da boca de uma senhora vestida de luto e que estava ainda sob a impressão do que lhe sucedera. Não pode existir, nesse fato, nem erro, nem farsa, nem impostura.
P. Drevet
Tenente do 14º Regimento de
Caçadores de Grenoble.”
Este elemento toma, às vezes, a aparência de uma comunicação do espírito por um médium, como se esse espírito visse exatamente o futuro, no que respeita, sobretudo, à morte do indivíduo de que se trata. O meu colega e saudoso amigo William Stead, diretor da Review of Reviews, que pereceu no naufrágio do “Titanic”, recebeu um dia, de seu “espírito Júlia”, uma predição singularmente estupenda:
“Há de haver alguns anos, eu tinha como empregada uma senhora possuidora de talento verdadeiramente notável, mas com um caráter desigual e uma saúde que deixava muito a desejar. Tornou-se de tal forma insuportável que, em janeiro, pensei seriamente em separar-me dela, quando “Júlia” escreveu por minha mão:
– Seja paciente com E. M. Ela virá encontrar-se conosco antes do fim do ano.
Fiquei estupefato, pois nada me autorizava a supor que ela ia morrer. Recebi o aviso sem dar parte da mensagem e continuei a utilizar os serviços dessa senhora. Foi, se não me falha a memória, entre 15 e 16 de janeiro, que recebi esse aviso. Em fevereiro, março, abril, maio e junho foi-me novamente repetido:
– Não se esqueça de que E. M. terá cessado de viver antes do fim do ano.
Em julho ela engoliu, por descuido, um pequeno prego que se alojou no intestino. Caiu então gravemente doente. Os dois médicos que a tratavam não tinham esperança de salvá-la. No intervalo, “Júlia” escreveu pela minha mão:
– É isso sem dúvida – perguntei-lhe – o que previa quando predisse que ela morreria?
Com grande surpresa minha, a resposta foi esta:
– Não. Ela curar-se-á disto, mas, apesar de tudo, sucumbirá antes do fim do ano.
E. M. curou-se de repente, com grande estupefação dos médicos, e pôde, dentro em pouco, retomar as suas ocupações habituais.
Em agosto, setembro, outubro e novembro o aviso do seu próximo fim foi-me comunicado de novo com a ajuda da minha mão. Em dezembro ela foi atacada pela influenza.
– É agora? – perguntei eu a “Júlia”.
– Não. Ela não virá para aqui por um meio natural; mas de qualquer maneira virá antes de findar o ano.
Sentia-me alarmado, e compreendendo que não podia impedir o acontecimento. O ano passou e ela encontrava-se ainda viva. “Júlia” replicou:
– Eu posso ter-me enganado em alguns dias; mas o que afirmei é verdade.
Em 10 de janeiro “Júlia” escreveu:
– Amanhã verá E. M. Faça-lhe as suas despedidas. Tome as disposições que julgar necessárias. Não voltará a vê-la mais na Terra.
Fui procurá-la. Encontrei-a com febre e tosse de mau caráter. Ia ser conduzida para o hospital.
Dois dias depois recebi um telegrama informando que, num acesso de delírio, ela se havia precipitado de uma janela do 4º andar e que a tinham levantado da rua, morta. A data não havia ultrapassado, senão de alguns dias, os doze meses a que se referira o primeiro aviso.
Posso provar a autenticidade desta exposição pelo próprio manuscrito das mensagens originais e pelo atestado assinado pelos meus dois secretários.”
Podia-se supor, na verdade, que o espírito tivesse conhecido com antecedência a época da morte e mesmo sabido que essa morte era acidental. Deve por isso a predição ser atribuída a um espírito? Não está provado; conheci suficientemente Stead, para ter tido ocasião de notar as suas raras faculdades psíquicas, ainda que ele não as tenha aplicado na sua própria segurança.
Esta premonição é, sem a menor dúvida, das mais notáveis. Quem é essa “Júlia”, tão conhecida dos psiquistas conhecedores dos escritos de Stead? Espírito? Subconsciência? Faculdades mentais especiais? Ignoramo-lo. Mas não é a matéria cerebral que vê assim o futuro.
No seu livro tão judiciosamente meditado e tão ricamente documentado, Lucidez e Intuição, o Dr. Eugène Osty nota, por sua vez, o fato seguinte de autopercepção intuitiva:
“A Sra. D., criatura lúcida, de escrita automática, admirou-se, em determinada época da sua vida, de ver, por momentos, a sua mão traçar espontaneamente a palavra R..., nome que ela nunca tinha ouvido, parecendo-lhe não ter isso qualquer significação. Durante alguns meses, no meio de suas ocupações, desde que a sua mão pousava sobre uma mesa ou que se preparava para escrever uma carta, a mesma palavra aparecia. Acabou por considerar esse movimento involuntário como um tic, deixando de preocupar-se com esse fato.
Uma tarde, seu marido anunciou-lhe que acabava de fechar imprevistamente um contrato com um engenheiro em R..., pequena povoação da Província de Orã.
Mais tarde, foi junho que a sua mão começou a escrever. A Sra. D. esforçou-se então por conseguir, por meio da escrita automática, a explicação dessa palavra.
A única resposta aos seus esforços foi sempre junho. O mês de junho chegou e a Sra. D. teve o desgosto de ver morrer seu marido.
Um pouco mais tarde, a sua mão obstinadamente traçou esta outra data: março. Pode depreender-se qual seria o terror dessa desventurada vidente que a si mesmo perguntava que outro terrível golpe do destino iria atingi-la. Julgando que a sua mão, na escrita automática, estava escravizada a um espírito desencarnado, dirigiu à entidade oculta as mais instantes súplicas, implorando-lhe que lhe fosse poupada a angústia da misteriosa ameaça. E a sua mão, em resposta às torturas do seu coração, traçava sempre esta única palavra: março.
A época fatídica e temida chegou. No mesmo mês a Sra. D. perdeu sua filha e sua mãe.”
Essa misteriosa história assemelha-se muito à precedente. Há ainda outras análogas que não reproduzo aqui por me faltar o espaço. Explicam-se umas pelas outras? Subconsciência? Força psíquica? Espírito exterior? Destino? Com que palavra a poderemos denominar? O singular aviso que em seguida exponho foi-me assinalado por um jovem estudante de Morbihan:
(Carta 4.042)
“Caro mestre:
É meu dever comunicar-lhe um fato de premonição acontecido na minha família.
Em 1896, meu avô, o comandante Dufilhol, oficial da Legião de Honra que V. Exa. conheceu em casa do Sr. Allan Kardec, em 1862, vivia com minha mãe, próximo da Vannes.
Certa ocasião descia sozinho a escadaria do castelo para se encontrar com a filha que fora ver as cavalariças. De repente, uma voz murmurou-lhe ao ouvido:
Uma morte na família.
Meu avô, surpreendido e comovido, pensou consigo mesmo: “Devo ser eu, que sou o mais velho.”
Não – respondeu a voz – Adolfo Planes.
Meu avô chegou às cavalariças com tão grande palidez que minha mãe indagou se estava indisposto. Ele respondeu negativamente e deu-lhe parte do aviso que acabava de receber.
Ambos ficaram muito contristados, escrevendo imediatamente a Adolfo Planes, meu jovem tio, então professor de inglês em Nice.
A resposta foi satisfatória, o que tranqüilizou um tanto minha mãe e meu avô.
Dois meses depois meu tio submetia-se a concurso de admissão a uma escola de Paris. As provas tinham sido duras e fatigantes. No momento em que o examinador lhe participava que seria aprovado e lhe dirigia as suas felicitações, o meu infeliz tio cambaleou, caindo sem sentidos.
Oito dias depois expirava nos braços de meu avô, vítima de meningite.
Contava apenas 26 anos. A voz não se tinha enganado.
A recordação da morte prematura de seu irmão é ainda tão cruel para minha mãe que ela não me teria nunca autorizado a escrever-lhe se não fora para o auxiliar nas suas investigações.
Saint-Raoul-Quer, 3 de agosto de 1918.
Adrien Dufilhol.”
As audições premonitórias são mais raras do que as visões premonitórias, mas seu número é ainda suficientemente grande para que as ponhamos de parte. Atribuí-las ao acaso não é coisa que de modo algum nos satisfaça.
No mês de agosto diversos leitores escreveram-me de Nova Iorque afirmando-me que o acidente acontecido a um tal William Cooper, fabricante célebre, esmagado por um tramway, tinha sido visto por sua mãe, a Sra. Ella Cooper.
Nessa mesma noite ela sonhou duas vezes que via o filho arremessado por terra e esmagado, e esse sonho repetido de tal forma a enervou que resolveu tomar em Filadélfia o comboio para Nova Iorque. Precisamente à hora em que chegou, da parte da manhã, depois de entrar num tramway para se dirigir à 33ª rua, em Broadway, viu, quando atravessava a 7ª avenida, um ajuntamento ao redor de um indivíduo que acabava de ser derrubado por um tramway. Esse indivíduo era seu filho.
Essas cartas acrescentam: accident which will probably result in the death of M. William Cooper. A morte ter-se-ia seguido ao acidente? Ignoro-o; mas nem por isso deixa de ser menos notável o sonho premonitório. Não há a menor dúvida de que essa mãe tenha sido advertida do que se ia passar. Como? Por quem? Para quê? Por que processo? É este o objetivo das investigações do presente livro.
Temos o caso de uma mãe que vê o seu filho esmagado. Eis outra sensação análoga, sob a forma intermediária: A exposição seguinte foi-me enviada de Biarritz, no dia 9 de julho de 1917, em resposta ao desejo que eu havia manifestado à Sra. Storms Castelot – erudita colega da Sociedade Astronômica de França, que me contou o sonho – de a receber diretamente da pessoa que o observara. É o conhecimento, com três dias de antecedência, de morte repentina. Vejamos o extrato:
(Carta 3.750)
“Apesar da tristeza que tal comunicação possa despertar em mim, devo garantir-lhe que a morte de meu filho João me foi anunciada na quinta-feira que precedeu o domingo em que o meu querido filho, que se encontrava então no estrangeiro com seu irmão Luís, nos deixou para sempre. Este sonho muito simples, aqui o tem:
Eu via, numa casa desconhecida, o meu filho Luís banhado em lágrimas, e como eu lhe perguntasse a causa do seu desespero, respondeu:
– Oh! mamã, é o João que morreu!
O meu querido filho contava dezenove anos, tinha uma saúde esplêndida e nada fazia pressentir tão fulminante fim: uma embolia, durante tranqüilo passeio de bicicleta, na companhia de seu irmão e de seu tio. Muito tempo depois, soube que na quinta-feira em que tive o horroroso pressentimento, meu filho tivera uma síncope provocada por um corte num dedo: coincidência estranha!
Outra coincidência estranha, mas essa dizendo-me respeito.
Achava-me em Hamburgo, durante uma das minhas numerosas tournées de concertos, quando me sobreveio um torcicolo que ameaçou impedir-me de cumprir o meu contrato naquela noite: corri rapidamente ao consultório de um médico especialista que tratava esses pequenos e desagradáveis acidentes por meio da eletricidade. Sob a influência da corrente elétrica, desmaiei. Nesse mesmo dia recebi de Paris um telegrama de minha mãe, no qual me dizia a inquietação que sentia por me ter visto, em sonho, desmaiada! Fiquei espantada! De resto, minha mãe teve sempre durante toda a sua vida um verdadeiro dom de vista dupla, segundo a expressão corrente.
B. Marx-Goldschmidt.”
Esta carta era confirmada pelo irmão do falecido.
Como vêem, essas espécies de intuições não são raras numa família. O mesmo sucede no que se segue.
É da República Argentina que me vem a relação deste sonho premonitório singularmente minucioso:
(Carta 799)
“Rosário de Santa Fé, 15 de setembro de 1899.
Julgo de meu dever, meu ilustre mestre, assinalar-lhe o seguinte fato sucedido com minha família, irrefutavelmente certo e que, creio, pode trazer bastante luz, do qual dareis conhecimento aos vossos leitores.
Uma das minhas tias-avós era conhecida pelos seus pressentimentos e pela sua vista mental.
Em 1868 ela viu em sonho uma cena de interior que era toda uma revelação. Esse quadro representava uma dependência onde uma das suas amigas, a Sra. B., assentada numa poltrona, perto de um fogão no qual ardia intenso lume, acariciava uma criancinha que conservava nos braços, enquanto a criada secava os cueirinhos junto ao fogo. Esse sonho foi contado a diversas pessoas, sem que qualquer delas lhe prestasse qualquer atenção, visto que a Sra. B., mãe de numerosa família e tendo já passado os quarenta anos e não tendo, para mais, nenhum filho desde há sete anos, não parecia, por isso, suscetível de ter outros. Entretanto, o que então parecia impossível realizou-se um ano depois. No dia em que minha tia-avó foi visitar a parturiente para felicitá-la pela sua delivrance, viu, na realidade, o sonho que tivera. O aposento, a disposição dos objetos, o fogão aceso, a criada ocupada em secar os cueirinhos diante do fogo, enfim, todos os pormenores do sonho estavam fielmente reproduzidos. A revelação cumprira-se inteiramente.
Queira, caro mestre, aceitar os respeitos do seu longínquo leitor e os mais profundos votos de ventura pela nossa querida França.
Emílio Becher.”
Outro fato, ainda:
Recebi da Suécia, em dezembro de 1899, a seguinte exposição de um sacerdote protestante muito conhecido:
(Carta 845)
“Neste momento deve realizar-se uma visita pastoral. Uma das entidades que havia de assistir, na semana que findou, a essa visita (que começaria na terça-feira, 3 de dezembro), no presbitério de Sjustorp, em Medelpad, sonhou, durante a noite de sábado, que a tinham chamado ao telefone e que um padre de Medelpad lhe dissera que a visita pastoral não se realizaria naquele dia porque morreria uma pessoa. Aquele que do mundo dos sonhos veio telefonar-lhe não lhe declarou o nome da pessoa que morreria. O sonhador lembrava-se perfeitamente do que se passara no dia seguinte de manhã. E qual não foi a sua estupefação quando, por volta do meio-dia, lhe comunicaram efetivamente pelo telefone que a esposa do bispo havia falecido repentinamente nessa mesma manhã, o que impedia o prelado de proceder à visita.”
Qual foi o agente desse fenômeno psíquico? A morte? Não é provável. O sacerdote com que, em sonho, se comunicou por um suposto telefone? Talvez. Mas por meio de que corrente mental, por qual assimilação? O próprio pensamento do bispo, irradiando ao longe? Mistérios da telepatia.
Ainda outro caso, tão trágico como o do Dr. de Sermyn:
Narra o Dr. Foissac:[15]
“Numa tarde de primavera, em 1854, o Padre Deguerry, abade de Madeleine, o Conde de Las Cazes e os Senadores Longet e Marshall, da Academia de Ciências, tiveram, numa reunião, acalorada discussão sobre o maravilhoso e as vistas proféticas, tendo o Senador Marshall feito a seguinte comunicação:
“Há um ano, em Edimburgo, dirigi-me, numa povoação dos arredores, à casa de um dos meus velhos amigos, o Sr. Holmes. Encontrei todos os rostos compungidos. Holmes tinha, nesse dia mesmo, assistido a um enterro, num castelo próximo; contou-me então que o filho dos donos do castelo tinha, por mais de uma vez, aterrorizado a família por manifestar os fenômenos que são atribuídos à segunda vista. Viam-no ora alegre, ora triste, isto sem causa aparente, o olhar abstrato e melancólico, e pronunciando, por vezes, palavras desconexas quando não descrevia estranhas visões. Procuraram, mas inutilmente, combater essa disposição por meio de exercícios violentos e por uma série de estudos variados, para o que se socorreram dos conselhos de hábil médico.
Uns oito dias antes do acontecimento a que me refiro, a família, que se encontrava reunida, viu, de repente, o pequeno William, que apenas contava doze anos, empalidecer e ficar imóvel. Prestam atenção ao que o pequeno diz e ouvem estas palavras: Eu vejo uma criança adormecida, deitada num caixão de veludo e coberta com um pano branco, tendo à volta coroas e flores. Por que razão choram os seus pais? Esta criança sou eu.
Convulsionados pelo terror, o pai e a mãe agarraram o filho, cobrindo-o de beijos e lágrimas. O pequeno voltou então a si, continuando a brincar como antes. A semana não findara ainda, quando a família, assentada à sesta, depois do almoço, procura o pequeno William, que há pouco ali se encontrava. Não o vê e chama-o: nenhuma voz responde.
A família, o mordomo, o médico, o capelão, os criados procuram-no; mil gritos de desespero se cruzam; percorrem o parque em todos os sentidos: William tinha desaparecido. Somente uma hora depois de pesquisas e de angústias é que a criança foi encontrada num lago onde havia caído ao pretender agarrar um barco que o vento tinha afastado da margem. Fez-se tudo, durante algumas horas, para o reanimar. O fatal presságio havia-se cumprido.”
Teremos ocasião, no segundo volume desta obra, saturado de documentos, de voltar a estes fenômenos seguidos de morte. Fiquemos agora por aqui, no estudo dos fatos metapsíquicos, atestando as faculdades transcendentes da alma. Essa criança tinha, sem a menor dúvida, visto o seu caixão.
Uma premonição de morte, das mais singulares igualmente, pode ler-se na autobiografia do Barão Lázaro Hellembach. Ei-la tal qual a encontramos nos Anais das Ciências Psíquicas, de 1877, pág. 124:
“Eu tinha a intenção de pedir a colaboração do diretor da seção de química da Escola de Geologia de Viena, Hauer, engenheiro de minas, para o assunto de algumas investigações que havia feito sobre a cristalização. Já tinha incidentalmente falado com ele sobre isso, visto que o laboratório ficava perto da minha residência e que Hauer é conhecido no mundo científico – pode-se mesmo dizer na Europa inteira – como especialista nesse assunto. Adiava sempre a minha visita, até que me resolvi a realizá-la no dia seguinte. Nessa mesma noite sonhei que via um homem pálido e desfalecido, amparado, pelas axilas, por outros dois homens. Não dei maior importância a esse sonho e, como havia resolvido, dirigi-me à Escola de Geologia. Como, porém, o laboratório se encontrava num outro ponto do edifício, diferente dos anos anteriores, enganei-me na porta e, encontrando a verdadeira porta fechada, vi, olhando por uma janela, a imagem exata do meu sonho: Hauer, que se havia envenenado com cianureto de potássio, amparado por dois homens que o transportavam para o vestíbulo. Era exatamente como tinha sonhado.”
O Barão Hellembach acrescenta aqui as observações seguintes:
“Se eu tenho chegado alguns minutos antes, poderia ter certamente impedido que o suicídio se desse, motivado por preocupações de família e de fortuna, visto que ofereceria a Hauer nova colocação e algum alívio material. Esta circunstância impressionou-me profundamente; e tanto mais quanto compreendi tudo o que vinha de perder sob o ponto de vista das minhas idéias e dos meus projetos e pensando igualmente que as minhas investigações estavam para sempre interrompidas.
É natural que a morte de Hauer, desfazendo os meus projetos, me tivesse impressionado muito; e é talvez por essa razão que a minha consciência guardou um resto de vista dupla.”
Sob o ponto de vista da telepatia, poder-se-ia julgar que o suicida, tendo provavelmente premeditado esse ato de desespero na noite que o precedeu, provocou o sonho do Barão Hellembach. Mas isto não explicaria o elemento essencial do sonho, o espetáculo de um homem de rosto lívido, agonizando, e amparado pelas axilas por dois outros homens.
Fazer intervir ainda a hipótese das circunstâncias fortuitas seria verdadeiramente o cúmulo.
Poderíamos notar aqui que todos esses fatos são, de mais em mais, demonstrativos da nossa afirmação de que a alma vê o futuro por meio de poderes ocultos. Um outro caso ainda, e não menos comovente, de premonição, foi observado, em 1905, na República de San Marinho:
Um certo Marino Tonélli, de vinte e sete anos, negociante de ovos, percorria, nessa qualidade, os mercados dos arredores, entre os quais o de Rímini. Na tarde de 13 de junho, encontrando-se nesta última localidade, entrou demasiadamente nas bebidas – o que nele era para admirar. Regressou depois a casa na carroça em que transportava os cestos dos ovos, felizmente vazios. Parece que, pelo caminho, se deixou adormecer, porque num sítio conhecido pelo nome de “Coste di Borgo”, onde a estrada faz tortuosa e íngreme curva, o moço negociante foi sacudido do veículo, encontrando-se estendido num campo, no fundo de pequena ribanceira, para onde havia sido projetado.
Reparou que a carroça se encontrava meio voltada na borda da estrada, enquanto o cavalo, que ficara quase suspenso no ar, se debatia em posição crítica. Depois de verificar que não estava ferido, o nosso homem segurou o cavalo e, com o auxílio de alguns camponeses que haviam acorrido, conseguiu igualmente retirar a carroça da beira da estrada. Estava entregue a esses trabalhos, quando lhe surgiu diante dos olhos uma figura de mulher que, à claridade da Lua, lhe pareceu ser a sua mãe. Grande espanto do negociante, que não pode duvidar de que assim fosse, ao ouvir a sua voz adorada e ao sentir-se abraçado por sua velha mãe que chorava de alegria ao perguntar-lhe se não se achava ferido, acrescentando:
– Eu tinha-te visto. Tua mulher e os dois pequenos dormiam já. Eu, porém, sentia um mal-estar, uma agitação extraordinária que não conseguia explicar. De repente, vi aparecer diante de mim este caminho, exatamente o mesmo sítio com a ribanceira de um dos lados; vi a carroça voltar-se e seres precipitado no campo. Chamavas por quem te acudisse e parecias morrer!... Esta última circunstância não é, Deus louvado! exata; mas o resto é tal como vi. Por fim experimentei um desejo irresistível de vir aqui, e sem acordar pessoa alguma, e reagindo contra o medo que me causava a solidão, a treva e a tempestade, vim até aqui, depois de caminhar quatro quilômetros; e teria andado mil para vir eu teu socorro.”
O redator do Messaggiero, que publicou esta exposição, termina dizendo:
“Tal é o fato exato que recolhi dos lábios ainda trêmulos de comoção dessa boa gente.”
Em seguida a essa notícia, publicada no Messaggiero, foi feito um inquérito pelo professor A. Francísci, no qual pedi para submeter os heróis desta aventura a pequeno questionário destinado a esclarecer certos pontos que a notícia do jornal deixara na sombra.
Eis as perguntas, como as respostas que lhe foram feitas:
“1º – Foi o primeiro acidente em viagem que sucedeu a L. Tonélli, sobretudo nestes últimos tempos?
Resposta – Sim.
2º – O local chamado “Coste di Borgo” é o único ponto perigoso da estrada? É pelo menos o mais perigoso de todos? Nas estradas que o Sr. Tonélli percorre geralmente, no regresso dos mercados, há outros sítios igualmente perigosos?
Resposta – Nessa estrada há outros sítios bem mais perigosos, assim como em outros caminhos que o Sr. Tonélli percorre habitualmente.
3º – Quando a Sra. Maria Tonélli começou a sentir-se inquieta, tinha já passado a hora costumada do regresso de seu filho? Tinha, pelo menos, passado, quando ela se decidiu a dirigir-se ao local?
Resposta – A hora habitual tinha passado havia pouco.
4º – A inquietação da mãe e a visão do acidente não se produziram quando Tonélli tinha já sido projetado fora do carro?
Resposta – A inquietação da mãe precedeu de algumas horas a visão do acidente, sucedendo-se este três quartos de hora depois da visão, de maneira que deu tempo a que ela percorresse a pé os quatro quilômetros que separam a casa deles do sítio conhecido por “Coste di Borgo”.
5º – Recorda-se Tonélli de ter pensado em sua mãe no momento do acidente?
Resposta – Ele garante que pensou nela com grande enternecimento, assim como em todos os membros da família; mas principalmente em sua mãe.
6º – Nenhum outro fato anormal sucedera à Sra. Tonélli ou a seu filho?
Resposta – Não.”
Esta confrontação, feita pelo professor Francísci, estabelece, fora de qualquer suspeita, a autenticidade do ocorrido,[16] que se aproxima muito daquele que há pouco acabamos de relatar. Essa visão de acidente antes de ele se ter dado é uma visão do espírito da mãe. O que acima relatamos, da criança vendo o seu caixão, é uma espécie de pressentimento pessoal.
Recordei anteriormente (cap. IV) o pressentimento do astrônomo Delaunays, que foi diretor do Observatório de Paris numa interinidade (1870-1872), e que morreu afogado na baía de Cherburgo, aonde fora contra a sua vontade, e fiz seguir esta recordação da da irmã de Arsênio Houssaye, arrebatada por uma vaga na margem de Penmarch’h.
Eis um caso da mesma ordem, ainda mais significativo e mais notável como precisão. O Barão José Kronhelm, de Podólia (Rússia), redigiu a seguinte narrativa sobre a morte de um alto funcionário do Ministério da Marinha russa, caso sucedido no mês de junho de 1855, em seguida à colisão entre dois navios, no Mar Negro:
“No começo do ano de 1855 a Sra. Lukawski foi despertada uma noite pelos gemidos que seu marido soltava enquanto dormia, gritando conjuntamente: “Socorro! Acudam-me!”, debatendo-se ao mesmo tempo com os movimentos de uma pessoa que está prestes a afogar-se. Ele sonhava com terrível catástrofe no mar e, despertando, contou que se julgara a bordo de grande vapor que rapidamente se afundara, em seguida a ter abalroado com outro. Lançara-se ao mar, sendo engolido pelas ondas.
Depois de contar o sonho que tivera, exclamou:
– Estou agora convencido de que morrerei tragado pelo mar.
E tal foi a sua convicção que começou imediatamente a pôr os seus negócios em ordem, como homem consciente de ter os seus dias contados. Tinham-se passado dois meses e a impressão do sonho começava a dissipar-se, quando recebeu uma ordem do Ministério para partir com todos os seus subordinados para um porto do Mar Negro. No momento de despedir-se de sua mulher, na estação de Petrogrado, Lukawski disse-lhe:
– Lembras-te do meu sonho?
– Por que mo perguntas?
– É porque tenho a certeza de que não voltarei mais e de que nunca mais nos veremos.
A Sra. Lukawski esforçou-se por tranqüilizá-lo, mas ele, com acentuação de profunda tristeza, acrescentou:
– Podes dizer o que quiseres; a minha convicção não mudará. Sinto que o meu fim está próximo e que nada poderá impedir que isso suceda... sim. Eu vejo o porto, o navio, o momento da colisão, o pânico a bordo... a minha morte... Tudo surge aos meus olhos...
E, depois de curta pausa, ajuntou:
– Quando receberes o telegrama com a notícia da minha morte e tiveres de tomar luto, peço-te não pores sobre o rosto o véu comprido, que detesto.
Sem poder responder, a Sra. Lukawski desatou a chorar. O silvo da locomotiva anunciou o sinal da partida. Lukawski abraçou ternamente sua mulher, enquanto o comboio se punha em movimento.
Depois de duas semanas de extrema inquietação, a Sra. Lukawski soube, pelos jornais, que uma catástrofe entre dois vapores, o “Wladimir” e o “Sireus”, acabava de dar-se no Mar Negro. Cheia de inquietação, enviou um telegrama ao Almirante Zelenoi, em Odessa, pedindo notícias. A resposta não se fez esperar. “Não temos até agora nenhuma informação de seu marido, mas não há dúvida de que ele se encontrava a bordo do “Wladimir”. A notícia da sua morte veio uma semana depois.
É preciso acrescentar que, no sonho, Lukawski tinha-se visto a lutar, para salvar-se, com outro passageiro, incidente que se realizou com escrupulosa exatidão. Ao dar-se a catástrofe, um passageiro do “Wladimir”, o Sr. Henicke, havia-se lançado ao mar com uma bóia de salvação. Lukawski, que já se debatia no mar, ao ver a bóia de salvação, dirigiu-se para o sítio onde se encontrava o passageiro, que lhe gritou:
– Não se agarre, porque a bóia não pode com duas pessoas. Afogar-nos-emos ambos!
Apesar do aviso, Lukawski agarrou-se à bóia, dizendo que não sabia nadar.
– Então fique com ela – exclamou Henicke –; eu sou bom nadador e sempre conseguirei salvar-me.
Nesse momento, uma onda separou-os. Henicke conseguiu salvar-se, enquanto se cumpria o destino de Lukawski.” (Light, 1899, pág. 45).
Citando esta narrativa, Ernesto Bozzano [17] faz notar que a convergência de circunstâncias, que não podem ser previstas, elimina totalmente a hipótese de coincidências fortuitas, e compara, a este propósito, outras teorias explicativas: a “reencarnacionista”, a “fatalista”, a “espírita”.
Por agora, não nos ocupemos senão de fatos. Queremos simplesmente convencer-nos da existência em nós de um elemento psíquico dotado da faculdade supranormal de ver o futuro.
A questão é de averiguar que o futuro existe virtualmente nas causas que o fazem agir e que pode, na realidade, ser visto exatamente em certas situações psicológicas.
Em todos os tempos se encontram esses exemplos da percepção do futuro; mas nunca os interpretaram como mereciam nem nunca viram neles a manifestação das faculdades internas da alma humana.
Eis um exemplo, pouco conhecido, do famoso Capitão Montluc, e que se pode ler no final do IV livro dos seus Comentários. Sabe-se que ele recebeu o bastão do Marechal de França e ainda se não esqueceu que Henrique II ficou mortalmente ferido em 1559, num torneio contra Montgomery. Montluc conta assim a sua visão:
“Na véspera do torneio, à noite, durante o meu primeiro sono, sonhei que via o rei assentado no seu trono com o rosto coberto de gotas de sangue e parecia-me que era assim que pintaram Jesus-Cristo quando os judeus lhe puseram a coroa de espinhos e que ele conservava as mãos erguidas. Olhei-o; via-lhe apenas a face e não podia descobrir o seu sofrimento nem ver outra coisa mais do que sangue no rosto. Parecia-me ouvir dizer a uns: “Ele está morto”; e a outros: “Ainda não morreu”. Via os médicos e os cirurgiões entrarem no quarto e dele saírem. E julgo que o meu sonho durou muito tempo, porque ao despertar notei uma coisa em que nunca havia pensado e é que um homem pudesse chorar enquanto sonha, pois tinha a cara banhada de pranto e os olhos teimavam em lacrimejar e assim longamente chorei. Minha mulher procurava confortar-me, mas nada conseguia afastar a idéia da morte do soberano. Muitos dos que ainda vivem sabem bem que o que relato não é uma história, pois logo que acordei lhes disse o que se passara comigo.
Quatro dias depois, um correio chegou a Nérac, trazendo uma carta do Condestável ao Rei de Navarra, na qual se dava parte do ferimento do Rei Henrique e da nenhuma esperança de o salvar.”
O que nos pode, parece, chamar mais a atenção para o trabalho que estamos a fazer aqui é que tudo isso tenha passado despercebido desde há tantos séculos e haja sido mesmo negado, desdenhado, ridiculizado e desprezado.
Encontrei uma curiosa carta, datada de 1615, de Nicólas Pasquier, dirigida a seu irmão, conselheiro do rei e almotacé da cidade de Paris, respeitante à morte de seu pai, Estêvão Pasquier, prevista por um sonho premonitório um ano antes, dia a dia. Eis o documento em questão:[18]
“Recebi as suas cartas hoje, três de setembro de 1615, participando-me a morte de nosso pai, sucedida no dia 30 de agosto, pelas duas horas da madrugada. Quero contar-lhe uma história extraordinária a esse propósito.
No ano passado, a 30 do mesmo mês de agosto e na mesma noite, cerca das 5 horas da manhã, sonhei que estava junto de nosso pai, que se encontrava deitado na sua cama. Levantando-se, ajoelhou para fazer as suas orações e fê-lo com grande recolhimento, as mãos postas e os olhos erguidos para o céu. Logo que acabou de orar mudou de cor e caiu morto nos meus braços. Quando terminou o sonho, acordei, tremendo como se tivesse frio, contando logo o que se passara a minha mulher. E como tinha a memória fresca do que acontecera, redigi tudo por escrito. Mas há mais: considere os dois fatos sobre o caso que exponho: um de que eu vi a morte de nosso pai um ano antes, dia a dia; e outro de que no próprio dia em que morreu, eu tinha encontrado o papel no qual não havia mais pensado. Faça a anatomia deste sonho e reconhecerá que tudo o que sucedeu com a sua morte fora por mim previsto; que ele não estaria doente por muito tempo, e a verdade é que não o esteve mais de dez horas; que morreria como bom cristão e assim sucedeu; e que todos os sentidos se conservariam sãos e intactos até ao último suspiro. Em conclusão, a sua morte foi o reflexo da sua vida, que tão calma decorreu durante 86 anos, 2 meses e 23 dias; e, tal qual, a sua morte decorreu docemente, sem trabalhos nem dor.”
Sim. Todos esses acontecimentos psíquicos são conhecidos desde há séculos. Os autores latinos contam-nos que o assassínio de Júlio César lhe havia sido anunciado de manhã por sua mulher Calpúrnia; que Brútus viu a derrota da batalha de Filipos predita pelo seu “gênio”, que Artérios Rúfus tinha visto em sonho, de manhã, o reciário que devia apunhalá-lo, etc.[19]
Tudo isso, porém, conservou-se incompreendido. E a premonição da morte de Henrique IV, contada pelo seu confidente Sully? E tantos outros?
A Astronomia teve o seu Copérnico, o seu Képler, o seu Newton. As ciências psíquicas não tiveram ainda senão o seu Hiparco, o seu Ptolomeu, o seu Aristarco; elas esperam ainda o seu Copérnico.
Basta ler-se para se encontrar um pouco por toda parte essas observações que só agora tomamos a sério.
Um dos sábios mais profundos e mais originais do século XVII, Pedro Gassêndi, amigo de Galileu e de Pereisch, dá parte do seguinte sonho premonitório:
“Pereisch partiu um dia para Nimes com um amigo, um certo Rainier. Este, durante a noite, notando que Pereisch falava a dormir, acordou-o, perguntando-lhe o que tinha. Pereisch respondeu:
– Sonhava que já tínhamos chegado a Nimes e que um ourives me oferecia uma medalha de Júlio César pelo preço de quatro escudos. Ia justamente entregar-lhe o dinheiro, quando, a meu grande pesar, você me acordou.
Chegados a Nimes, e como dessem algumas voltas pela cidade, Pereisch reconheceu a loja do ourives que tinha visto em sonho. Entrando, perguntou se não teria qualquer objeto curioso para vender, ao que o ourives respondeu:
– Tenho, sim: uma medalha de Júlio César.
Como lhe perguntasse quanto custava, o ourives replicou:
– Quatro escudos.
Encantado por ver o seu sonho realizar-se, Pereisch apressou-se a pagar os escudos pedidos.”
Aqui a realização da premonição parece ter sido determinada pela recordação da própria premonição, visto que Pereisch reconheceu a loja do joalheiro que havia visto em sonho.
O Dr. E. Osty, de particular competência no estudo da lucidez, fez sobre esse assunto uma conferência documentada no Instituto Geral de Psicologia, no dia 24 de março de 1919. Da sua conferência extrairei o relato seguinte:[20]
“Em 1912, um médium lúcido, que pela primeira vez utilizei, descreveu assim a minha vida de então:
– ... O senhor residia numa pequena cidade no centro da França... eu vejo sua casa... de habitação, dando para uma praçazinha... mas não é aí que estão as suas ocupações... O senhor dirigia-se para o seu trabalho numa casa onde tinha o seu escritório... lá remexia em muitas folhas de papel... Em quantas folhas o senhor tocava!... Trazem-vos outras mais de um gabinete ao lado do vosso, onde se encontram várias pessoas a escrever... é uma perpétua ida e vinda entre o compartimento onde estão e o vosso... O senhor, depois de olhar para as folhas que lhe trazem, torna-as a entregar... outras pessoas de fora vêm também trazer papéis... o senhor toma-os, escreve neles e torna a entregá-los. Em quantas folhas o senhor toca! Quanta papelada!...
Tudo isso era falso. A minha existência, então, limitava-se, em grande parte, à prática da medicina pura, e também ao meu trabalho pessoal sobre Psicologia. Tudo isso se torna verdadeiro a partir de agosto de 1914. Médico chefe do hospital em Vierson durante os dois primeiros anos de guerra, a visão fragmentária do caso exposto transformou-se num aspecto, direi mesmo, no aspecto principal, característico de minha vida cotidiana. Eu fiquei submergido pela papelada burocrática.”
Essa percepção do futuro apresentava-se tão clara e precisa como uma janela aberta sobre uma cena futura. É de notar que essas percepções individuais são bastante freqüentes, enquanto os acontecimentos gerais, e, nomeadamente, a espantosa catástrofe social da guerra alemã de 1914 a 1918 não tivessem sido objeto de qualquer previsão característica desse gênero; do que poderia inferir-se que se trata unicamente de sensações de alma para alma.
O meu laborioso e muito saudoso amigo, o Dr. Moutin, que fez, em minha casa, em 1889, notáveis experiências de magnetismo, das quais terei ocasião de falar mais adiante, ocupou-se, em 1903, de estudos analíticos sobre o Espiritismo, entre os quais podemos notar o singular anúncio que segue:
Numa sessão que se realizou em 19 de agosto, da qual ele guardou os respectivos autos conforme o seu excelente costume, um “espírito” manifestou-se por meio de uma mesa, afirmando ser uma senhora de nome Hermância V., recentemente falecida. O doutor conhecia de longa data essa senhora e o marido. A declaração seguinte da “Sra. Hermância” deixou-o completamente espantado:
– Meu marido vai casar-se novamente em setembro próximo. Antes do seu casamento, há de vir a Paris, mas não terá tempo de o visitar.
– O que me diz é impossível. Conheço V. Sei bem a afeição que dedicava a sua mulher e não posso crer que se case quatro meses depois do seu falecimento.
– No entanto é a pura verdade e dentro de alguns dias receberá a confirmação do que digo.
– É então o interesse que o guia e não a afeição?
– O interesse não entra neste assunto, mas, como sabe, Luciano (é o nome de batismo de V.) não pode viver sozinho.
– Casar-se-á com uma senhora da idade dele?
– Não; com uma menina de vinte e três anos e pouco. Depois do casamento deixará a Provença para vir para Paris.
– Como pode ser isso, com a posição que ele ocupa na Provença? É absolutamente inadmissível.
– Circunstâncias desastrosas e, sobretudo, uma grande perda de dinheiro, obrigá-lo-ão a vir para Paris, a fim de encontrar uma nova situação.
– Veremos se o seu vaticínio se realiza, o que duvido; aceitando, porém, o que me acaba de dizer, veria com desprazer essa união?
– Pelo contrário, visto que Luciano não pode viver só.
Findas estas palavras, a mesa ficou imóvel. Depois de alguns minutos de espera, perguntei se a comunicação havia terminado: sim, foi a resposta.
A Sra. V. nunca mais se apresentou e foi a única manifestação que nos deu.
No caso presente, notou Moutin, ninguém devia duvidar de tais revelações, nada podia fazer tomar a sério esta comunicação. Apenas eu e as pessoas de minha família conhecíamos a morta e estávamos bem longe de acreditar no que acabava de ser-nos dito. As outras personalidades que assistiam às nossas reuniões nunca tinham ouvido pronunciar o nome de V.
Dias depois, a 27 de agosto, recebi uma carta do meu amigo V., na qual me anunciava para o mês de setembro o seu casamento com a Srta. X. e me dava alguns esclarecimentos sobre a sua futura esposa – esclarecimentos que coincidiam exatamente com os que me tinham dito a 19 de agosto.
Em março de 1904 o Sr. V. veio ver-nos, informando-nos de que acabava de instalar-se em Paris; transmiti-lhe a comunicação de Hermância e ele ficou por tal forma surpreendido que, embora não duvidasse das nossas afirmações, quis conhecer a ata dessa reunião e pôde assim verificar que tudo quanto tinha dito sua primeira esposa era de uma exatidão rigorosa: – a sua viagem a Paris, antes de consorciar-se segunda vez, a sua mudança de situação. Ficou petrificado e afirma a realidade dos fatos concludentes que não hesitamos em oferecer como prova da conservação do eu depois da morte e ainda como prova patente da identidade da Sra. Hermância V.
O Dr. Moutin apresenta este fato “como o mais importante” dos que influíram para a sua convicção espírita. Possuirá na verdade o valor categórico e absoluto que lhe atribui?
Está demonstrado que os nossos pensamentos podem agir, quer consciente quer inconscientemente, para produzirem estes ditados tiptológicos. O Dr. Moutin e sua família conheciam a Sra. Hermância V.; a idéia de que seu marido, ficando viúvo, se tornasse a casar nada tem de extraordinário. Por outra parte, o pensamento do viúvo pode não ter sido alheio à experiência, pois que já estava na intenção de voltar a casar-se e que assim o anunciava aos seus amigos, oito dias decorridos desta sessão. Não lhe ocuparia também o espírito nesse momento, o projeto de trocar a província por Paris.
Parece-me que a identidade da morta não é de todo exata e que a sua manifestação poderia ser determinada por outras causas psíquicas. Julgo-a, no entanto, provável. Não é este o lugar próprio para a discussão de tão importante problema e apenas assinalo tal fato como exemplo de anúncio preciso de um acontecimento futuro.
Acrescentarei, porém, que tanto neste caso particular como em outros análogos, a primeira esposa do amigo do Dr. Moutin poderia ter, mesmo enquanto viveu, a intuição desse segundo consórcio, aprovando-o até, o que depõe a favor da identidade. Voltaremos a este assunto no terceiro volume da presente obra, ao discutirmos as manifestações de mortos.
O afamado pároco d’Ars, o Padre Vianney (1786-1859), ofereceu muitos exemplos da sua faculdade de ver o futuro.
Eis um de tais exemplos, que eu reproduzo da sua biografia:[21]
“Sóror Maria Vitória, fundadora de um Recolhimento para raparigas, estava em Ars, nos começos da sua obra, com mais duas companheiras, das quais uma é a sua atual assistente. Certa manhã, quando as três se dispunham a ouvir a missa do Rev. Vianney, antes de saírem de Ars, o pároco aproximou-se delas e, dirigindo-se à sóror Maria Vitória, ainda secular, disse-lhe:
– É preciso partir imediatamente!
– Mas, Sr. pároco – respondeu ela, surpreendida – queríamos, antes disso, ouvir a santa missa.
– Não, minha filha, partam sem tardança, porque uma de vós irá adoecer. Se se demoram, serão obrigadas a ficar aqui.
Com efeito, a uma curta distância da região que habitavam, uma das três viajantes, a que deveria depois ser sóror Maria Francisca, encontrou-se de tal maneira indisposta que as suas duas companheiras se viram forçadas a transportá-la nos braços até à residência dela. Foi este o início da enfermidade que nada deixava prever.”
O padre Vianney era dotado de faculdades psíquicas transcendentes. Atribuía ao diabo certas manifestações de ordem inferior, como os ruídos inexplicáveis; mas nada há menos demonstrado do que a existência de Satanás.
Esta premonição era útil. Na maior parte dos casos, as premonições não servem para nada e nada evitam. Eis aqui uma, no entanto, que salvou a vida de uma criança: a Sociedade Inglesa de Investigações Psíquicas relatou, entre outras, uma advertência muito precisa de visão do futuro, salvando a vida de uma pequenita que ia brincar num sítio próximo do caminho de ferro de Edimburgo, onde a queda de uma locomotiva matou três homens e teria esmagado também a criança. A propósito desse curioso salvamento, a mãe escreve o seguinte:
“Tinha dito a minha filha que das três para as quatro horas lhe concedia a liberdade de ir passear; e, como estava só, aconselhei-a a dirigir-se ao “jardim do caminho de ferro” (nome que ela dava a uma estreita faixa de terreno entre o mar e a via-férrea). Poucos minutos depois da sua partida, ouvi distintamente uma voz interior que me observada: “Manda-a buscar sem demora, ou suceder-lhe-á alguma coisa terrível.”
Imaginei que se tratava de estranha auto-sugestão e a mim mesma perguntei o que, na realidade, poderia acontecer-lhe num tão lindo dia e não a mandei procurar. Passado um momento, contudo, a mesma voz recomeçou a falar-me com palavras idênticas, mas mais imperiosamente. Resisti ainda e dei tratos à imaginação para adivinhar o que poderia ter acontecido à criança: pensei no encontro de um cão raivoso, mas isto era de tal modo improvável que seria absurdo chamá-la sob tal pretexto; e, se bem que principiasse a sentir-me inquieta, decidi nada fazer, tentando pensar noutra coisa, o que consegui, durante instantes; mas, em breve, a voz renovava a sua insinuação, em idênticos termos: “Manda buscá-la imediatamente ou suceder-lhe-á alguma coisa terrível.” Ao mesmo tempo, fui assaltada por violenta tremura e por uma impressão de intenso pavor. Levantei-me bruscamente, toquei a campainha e ordenei à criada que fosse procurar, sem a menor delonga, a minha filha, repetindo automaticamente as palavras da insinuação: “doutra forma, suceder-lhe-á alguma coisa terrível”.
Ao cabo de um quarto de hora, a serva aparecia com a criança que, desapontada por eu a mandar buscar tão depressa, me perguntou se eu pretendia retê-la em casa durante todo o dia.
– Não – respondi – e se me prometes que não vais para o “jardim do caminho de ferro” podes ir para onde quiseres, por exemplo, para a casa do teu tio, onde brincarás com os teus priminhos, no quintal.
Pensei que, entre essas quatro paredes, ela estaria em segurança; porque, embora minha filha tivesse regressado sã e salva, eu sentia nitidamente que, no ponto em que permanecia anteriormente, o perigo continuava a existir e desejava impedir que para lá voltasse.
Ora, foi precisamente nessa altura que a locomotiva e o tênder descarrilaram, destruindo os parapeitos e indo despedaçar-se contra os próprios rochedos onde a pequenita costumava sentar-se.”
Esse salvamento extraordinário foi confirmado pelos depoimentos da família e dos vizinhos. Ocorreu no mês de julho de 1860 e publicou-se no Jornal da Sociedade de Investigações Psíquicas (t. VIII, março de 1897). Também eu o publiquei na Revista, em maio de 1912. A sua exatidão é insofismável.
Acrescentar-lhe-ei, com Bozzano, uma premonição não menos notável que salvou a vida de toda uma família e igualmente produzida por via misteriosa. É reproduzida no Jornal da Sociedade de Investigações Psíquicas (t. I, pág. 283). O Capitão Mac Gowan narrou ao professor Barrett o seguinte fato ocorrido com ele:
“Em janeiro de 1877, encontrando-me em Brooklyn, com meus dois filhos ainda muito crianças, e que estavam em férias, prometi-lhes que em determinada noite os levaria ao teatro. Na véspera dessa noite fui escolher os três lugares e comprar os bilhetes.
Na manhã do dia fixado para irmos assistir ao espetáculo, comecei a ouvir uma voz interior que me dizia com insistência: “Não vás ao teatro; leva os teus filhos para o colégio.” Apesar dos esforços que empreguei para me distrair, não podia impedir essa voz de continuar a repetir as mesmas frases, num tom mais imperioso que anteriormente: a coisa chegou a tal ponto que, pelo meio-dia, decidi-me a informar tanto os meus amigos como os meus filhos de que não devíamos ir ao teatro. Os meus amigos admoestaram-me por essa decisão, observando-me que era cruel privar as crianças de diversão tão nova para eles, e tão impacientemente esperada, depois da promessa formal que lhes fizera: isto levou-me, ainda, a mudar de resolução.
Contudo, durante toda a tarde essa voz interior não deixou de repetir a ordem, com tão imperiosa insistência que, chegada a noite, e uma hora antes do princípio do espetáculo, anunciei peremptoriamente a meus filhos que em vez de irmos ao teatro iríamos antes a Nova Iorque: e partimos.
Ora, sucedeu que, nessa mesma noite, o teatro foi inteiramente destruído por um incêndio, morrendo queimadas pelas chamas 305 pessoas.
Se eu tivesse ido ao espetáculo, nós e minha irmã, que fora ao teatro, teríamos perecido, porque sairíamos por uma escada em que foi esmagada toda a gente que por aí pretendeu salvar-se.
Jamais na minha vida tive outro pressentimento, não costumo mudar de resolução sem razões sérias e nesta ocasião fi-lo com a maior repugnância e absolutamente contra minha vontade.
Qual foi, pois, a causa que me forçou, contra o meu próprio desejo, a não ir ao teatro depois de ter pago os três bilhetes e na boa disposição de passar a noite agradavelmente?”
O Capitão Mac Gowan explicou ao professor Barrett que a voz interior [22] ressoava nitidamente para ele, “como se se tratasse de alguém que efetivamente lhe falasse do interior de seu próprio corpo” e que ela insistira nos seus avisos desde o momento do primeiro almoço até o instante em que partira para Nova Iorque com seus filhos... Sua irmã conserva os três bilhetes adquiridos por ele no dia precedente ao do incêndio do teatro.[23] Todos esses fatos são de tal maneira convincentes e tão altamente demonstrativos que se confirmam por completo uns com os outros, formando um bloco que nenhuma força vingará destruir.
Parece-me supérfluo juntar mais exemplos aos precedentes. No entanto existem outros tão típicos que seria lamentável não os recordar, para fixar inteiramente a sensação da verdade nos espíritos mais recalcitrantes. A nítida observação narrada pelo rigoroso experimentador Liébault,[24] na sua Terapêutica Sugestiva, é especialmente notável.
O sábio médico de Nancy conta que a 7 de janeiro de 1886, pelas 4 horas da tarde (segundo o seu canhenho diário autêntico), um dos seus clientes, o Sr. de Ch..., foi consultá-lo, num estado de nervosismo bem compreensível. Vejamos a história:
“Seis anos antes, a 26 de dezembro de 1879, passeando numa rua, esse moço vira escritas numa porta estas palavras: “Sra. Lenormand, nigromante”. Espicaçado pela curiosidade, entrara.
Examinando-lhe a mão, a profetisa dissera-lhe:
– Dentro de um ano, contado dia a dia, perderá seu pai. Em breve será soldado (tinha então dezenove anos); não se conservará durante muito tempo nas fileiras. Casará novo. Do seu casamento nascerão dois filhos. Morrerá aos vinte e seis anos.
Esta profecia assombrosa, que o Sr. de Ch... confiou a alguns amigos e a várias pessoas de sua família, não foi por ele tomada a sério a princípio; mas, seu pai morria a 27 de dezembro de 1880, ao cabo de curta enfermidade – justamente um ano depois da entrevista com a nigromante – e essa desgraça arrefeceu um pouco a sua incredulidade. Quando chamado à vida militar, passados sete meses somente, e quando, casado pouco tempo depois, foi pai de dois filhos, próximo a atingir os seus vinte e seis anos, sentiu-se abalado definitivamente pelo medo, julgando que poucos dias de vida lhe restavam. Foi então consultar o Dr. Liébault, interrogando-o se não seria possível conjurar a sorte, porque, pensava ele, tendo-se realizado os quatro primeiros acontecimentos anunciados pela predição, o quinto devia fatalmente realizar-se também.
Nesse mesmo dia e nos seguintes – diz o médico – tentei mergulhar o Sr. de Ch... num sono profundo, com o fim de dissipar a negra obsessão do seu espírito: a da sua morte próxima, que ele julgava dever dar-se a 4 de fevereiro, dia do aniversário do seu nascimento, embora a nigromante nada houvesse precisado acerca deste assunto. Estava por tal forma agitado que me foi impossível produzir-lhe a mais ligeira sonolência. Entretanto, como urgia seqüestrá-lo à influência da sua convicção, pois tem-se visto realizarem-se inteiramente certas predições por auto-sugestão, propus-lhe que fôssemos consultar um dos meus sonâmbulos, um velho chamado o Profeta, por ter anunciado a época exata da sua cura do reumatismo que havia quatro anos o torturava, e também a época da cura de sua filha.
O Sr. de Ch... aceitou avidamente a minha proposta e não faltou à consulta. Posto em relações com o sonâmbulo, as suas primeiras palavras foram estas:
– Quando morrerei?
O sonâmbulo, previamente avisado e avaliando a perturbação desse moço, respondeu-lhe, depois de o ter feito esperar:
– Morrera... morrerá, dentro de quarenta e um anos.
O efeito causado por estas palavras foi maravilhoso. O consultante tornou-se imediatamente alegre, expansivo e cheio de esperança, e quando passou o dia 4 de fevereiro, por ele tão temido, julgou-se salvo.
Já não pensava em nada disso, quando, em princípios de outubro, recebi uma carta tarjada de preto, comunicando-me que o meu infeliz cliente acabava de sucumbir, a 30 de setembro de 1886, aos vinte e sete anos incompletos de idade, como lho havia profetizado a Sra. Lenormand. E para que se não suponha que houve aqui qualquer erro da minha parte, conservo tanto essa carta como as anotações: são dois testemunhos escritos e inegáveis.”
Tal é a narrativa do Dr. Liébault, cujos trabalhos são conhecidos. Analisem, dissequem esta série de fatos consecutivos, com todo o cepticismo imaginável, com o mais severo rigor cirúrgico, e então, mesmo que se pense que nada de surpreendente existe no fato de a nigromante haver anunciado a este rapaz de dezenove anos que seria soldado, que em seguida se casaria, restarão ainda, para justificar, quatro coincidências: 1ª- a morte de seu pai, no espaço de um ano contado dia a dia; 2ª- a sua baixa do serviço militar, antes de terminado o tempo habitual; 3ª- o nascimento de dois filhos; 4ª- a sua própria morte, na idade de vinte e sete anos incompletos. Julgo que bastaria unicamente esta narrativa para estabelecer a nossa convicção. E bastaria a mesma narrativa também para nos mostrar que é imprudente apoiarmo-nos nessas questões, mesmo que se não creia nelas, atendendo a que a nossa tranqüilidade sofre inevitavelmente e que é desnecessário criarmo-nos inquietações.
Mas, poderemos dominar-nos sempre? Devemos confessar que todo esse estudo das condições da morte é eriçado de pontos de interrogação.
O seguinte fato é um dos mais bizarros. Como explicá-lo também?
Na noite de 24 para 25 de maio de 1900, o Sr. Renou, de vinte e oito anos de idade, vivendo numa grande cidade do norte da França, sonhou que, estando em casa do seu cabeleireiro, a mulher deste lhe deitava cartas (digamos, de passagem, que a personagem mencionada nunca dera provas de possuir esse dom). Nessa ocasião, ela dizia-lhe textualmente: “Seu pai morrerá a 2 de junho.”
A 25 de maio, pela manhã, o Sr. Renou contou esse sonho a sua família. Vivia então com os seus, e todas essas pessoas, muito cépticas acerca de tal gênero de advertência, se riram, sem ligarem ao caso a menor importância.
O Sr. Renou, pai, tivera alguns acessos de asma, com longos intervalos; mas nesse momento passava muito bem de saúde. No dia 1º de junho, assistindo ao enterro de pessoa sua conhecida, contou o referido sonho a um amigo, concluindo alegremente:
– Se hei de morrer amanhã, não tenho muito tempo a perder.
O dia inteiro passou, sem que se sentisse indisposto. A noite, um dos seus filhos, soldado da guarnição de Verdun, apareceu em casa, de licença. Toda a família reunida conversou alegremente até altas horas.
Pelas onze e meia, o Sr. Renou, pai, deitou-se, bem disposto. À meia-noite assaltou-o bruscamente um ataque de opressão: dispnéia intensa, tosse violenta, expectoração espumosa e sanguinolenta. Correu-se à procura de um médico: era muito tarde, tudo havia acabado. Vinte minutos depois da meia-noite – 2 de junho, conseqüentemente – ele morria.”
Esta narrativa, à qual apenas se modificou o nome, a pedido da família, foi publicada em Os Novos Horizontes da Ciência (Douai, junho de 1905). O Dr. Samas, que assinala o fato, procura-lhe uma explicação. Os cépticos resolverão facilmente o assunto – diz ele –, objetando que não houve nisto mais do que simples coincidência: o Sr. Renou, cardíaco, e por conseqüência impressionado pelo sonho; o regresso de seu filho, segunda emoção; a sua imaginação, já sobreexcitada, determinam, por ação reflexa, a última crise. Mas vimos há pouco que nem ele nem qualquer membro de sua família tinham ligado a menor importância a esse sonho estranho. E sendo assim?...
Consideremos também este sonho premonitório de morte, ao qual se associa uma aparição:
A 8 de março de 1913, recebi a importante narrativa seguinte da Sra. Susana Bonnefoy, presidente da União das Mulheres de França, Cruz Vermelha francesa, em Cherburgo, mulher do médico-chefe do Hospital Marítimo:
(Carta 2.325)
“É necessário, meu caro mestre, que eu lhe conte um fato de premonição pessoal, que deve juntar-se com utilidade à lista dos seus documentos psíquicos.
No dia 18 de janeiro último, pelas 8 horas da manhã, a criada do Sr. Féron, advogado, rua Cristiana, e primeiro adjunto da cidade de Cherburgo, veio anunciar-me a morte súbita de seu amo, ocorrida dez horas antes. A afeição que me ligava ao Sr. Féron era mais a de irmã do que a de pessoa amiga. Muito comovida, apressei-me a oferecer os meus serviços à sua viúva. A Sra. Féron, casada havia vinte e oito anos com um homem que por ela tinha constantemente as maiores atenções, estava consternada, desejava morrer.
– E pensar – exclamou ao ver-me – que há um mês ele dizia continuamente que não chegaria ao fim de janeiro! Há poucos dias foi ao enterro de um seu amigo e teve, na noite seguinte, um sonho muito estranho, no qual este amigo lhe aparecera, dizendo-lhe: “Tal dia virás juntar-te comigo.”
Quando a Sra. Féron terminava esta narrativa, entre soluços, a Sra. Laflambe, que mora nesta cidade, na praça Napoleão, entrava em sua casa. A Sra. Féron ainda acrescentou:
– Meu marido tinha profetizado, em seguida aos seus sonhos, não só a morte de sua mãe como ainda a do seu esposo, minha senhora. Quando partiram para Vichy (em 1911), onde o Sr. Laflambe quis que a senhora fosse tratar da saúde, meu marido disse-me: “O nosso amigo Laflambe vai a Vichy por causa da saúde de sua mulher, mas não voltará.”
O Sr. Laflambe, muito bem disposto no momento da partida, foi atacado, em Vichy, de uma congestão pulmonar mortal.
Ao regressar dessa visita que eu lhe conto muito simplesmente, deparou-se-me a criada e perguntei-lhe:
– É verdade ter o Sr. Féron estado ainda ontem de tarde na mairie, gozando boa saúde e não pensando em morrer tão cedo?
– Oh! senhora – respondeu ela –, o Sr. Féron dizia-nos, pelo contrário, ter sonhado que não chegaria ao fim de janeiro e parecia muito impressionado por isso.
O Sr. Féron sentiu-se subitamente enfermo, ao passar na rua, e sucumbiu meia hora depois, levado por uma embolia do coração. Muito estimado em Cherburgo, possuía bela fortuna, excelente saúde e tudo lhe sorria na vida.
Ontem, 5 de março, conversei de novo com a Sra. Féron, acerca desta singular premonição. Disse-me que seu marido estava persuadido de ter vivido já uma outra existência diferente desta.
Susana Bonnefoy
Rua de la Palle, 13, Cherburgo.”
Encontrando-me em Cherburgo, em setembro de 1914, o Sr. e a Sra. de Bonnefoy confirmaram-me este caso tão curioso, e tive dele, além disso, uma confirmação independente e espontânea pelo Sr. Biard, diretor do Despertar da Mancha, a quem a morte súbita do adjunto do maire de Cherburgo impressionara e que não ignorava as circunstâncias em que ocorrera.
Esses fatos existem. De nada serviria negá-los. Devem, pelo contrário, servir para elucidar-nos.
Eis aqui um outro caso da mesma natureza:
O Sr. Hurlay, negociante em Pont-Audemar (Eure), escrevia-me, a 13 de abril de 1918 (carta 4.024) que o Dr. Castara vira, uma noite, um homem afastar os cortinados do seu leito e anunciar-lhe: 1º- uma bela situação; e 2º- a sua morte aos quarenta anos; que, na data anunciada, reuniu os seus amigos a um grande jantar, fazendo parte dos convivas seu avô e sua avó, felicitando-se pela terminação do prazo do pesadelo, e que, à meia-noite, foi acometido por uma forte dor de dentes e caiu morto.
Ainda outro fato:
O naturalista bem conhecido, Edwin Reed, diretor do Museu de História Natural da cidade de Conceição (Chile), gozava de excelente saúde ainda pouco tempo antes da sua morte. Dois meses antes do seu falecimento, sonhou que, ao chegar ao fim de uma avenida em que passeava, via um túmulo com uma cruz, onde se lia a seguinte inscrição: “Reed, naturalista, 7 de novembro de 1910”. O Sr. Reed contou, gracejando, esse sonho estranho a muitos amigos, em várias ocasiões. Pouco tempo depois a Sra. de R., nora do Sr. Reed, que residia em Mendoza, sonhou, uma noite, no momento em que se preparava para festejar o aniversário do seu casamento, que passaria no mesmo dia 7 de novembro, que todos os presentes, que nessa data lhe ofereciam, eram coroas funerárias...
Ora, o Sr. Reed faleceu a 7 de novembro de 1910. Nos dias que precederam a sua morte, lembrava aos que o cercavam a data anunciada, sem parecer ligar a isso a menor importância.[25]
Poderia mencionar numerosos casos análogos, probatórios todos de que o futuro pode ser visto. Não é esse, porém, o intuito deste livro, e eu já lhes consagrei um volume especial que será brevemente publicado. Os exemplos que se acabam de ler são mais que suficientes para este capítulo, destinado simples e expressamente a assinalar, como os antecedentes, a existência de faculdades da alma independentes do exercício dos sentidos materiais. Não seriam mais nitidamente provadas tais faculdades se eu juntasse outros depoimentos aos que aí ficam.
* * *
Julgo que o leitor atento destas páginas não pode duvidar da existência da alma e das suas faculdades puramente psíquicas.
Antes do conhecimento da telepatia, nos séculos passados, essas espécies de advertências eram atribuídas aos anjos, aos demônios e, há cinqüenta anos, aos espíritos desencarnados. Hoje podemos pensar que há transmissão telepática de cérebro para cérebro, que as ondas cerebrais transpõem as distâncias. É possível. Mas é possível também que a Ciência futura sorria das nossas teorias atuais, como sorrimos das antigas. Seja qual for a explicação, os sonhos premonitórios, as visões do futuro por processos diversos são autênticos; os inquéritos confirmam-nos e é isto o que nos interessa.
Poderíamos, nesta exposição de observações relativas à vista do futuro, falar das premonições, das previsões, das predições calculadas pela Astrologia, por mais inexplicáveis que igualmente sejam. Que o nosso destino possa ser lido nos astros, eis o que parece inadmissível, e absolutamente ilógico para a nossa inteligência, depois que a aparência geocêntrica foi dada como falsa pela Astronomia moderna. No entanto, há exemplos singulares da realização dessas predições. Falta-nos o espaço para relatá-los. Todavia, citarei de passagem alguns de autenticidade incontestável e devidos a homens de alto valor, astrônomos célebres.
David Fabrícius, pastor protestante, nascido em Éssen, em 1564, falecido em Resterhaft, em 1617, astrônomo a quem se deve a descoberta de “Mira Céli”, a maravilhosa estrela variável da constelação da Baleia, estava em relações científicas com Tycho Brahé e Képler e, como eles, ocupava-se da Astrologia, em que de resto tinha fé. Ele mesmo calculava, em conformidade com as constelações, que o sétimo dia do mês de maio de 1617 lhe seria fatal. Nesse dia tomou todas as precauções possíveis para evitar qualquer acidente. Finalmente, pelas 10 horas da noite, depois de trabalhos absorventes, pensou que poderia ir tomar ar, durante um momento, ao pátio do presbitério. Apenas aí chegou, um camponês chamado João Hayer, que se julgou visado com o nome de ladrão num dos sermões de Fabrícius, saiu de um ponto em que se havia emboscado e, com uma pancada de forcado, fraturou o crânio do pobre pastor, que expirou nessa mesma noite.
Conta-se que o seu amigo Tycho Brahé leu, também, nos astros que certo dia designado lhe seria funesto. Em vão se rodeou de todas as precauções; foi atacado, na sombra, por um seu inimigo pessoal, Mauderup Parsberg, que lhe arrancou parte do nariz, o que obrigou o ilustre astrônomo a trazer um nariz de prata. E, efetivamente, em todos os seus retratos, vemos o mesmo nariz listado por uma costura oblíqua.
João Stoeffler, nascido em 1472 e falecido em 1530, muito dado aos cálculos astrológicos, adivinhou com exatidão, pelo menos no que lhe dizia respeito. O exame do ato do seu nascimento levara-o à convicção de que morreria, em dia determinado, do choque de um corpo pesado que devia cair-lhe à cabeça. Nesse dia não saiu. Recebeu alguns amigos e pensava que o resto do tempo se passaria sem novidade, quando, pretendendo chegar a um livro mal colocado na prateleira de uma estante que não estava segura, essa mesma estante lhe caiu na cabeça com todos os volumes que a sobrecarregavam, e morreu, na realidade, das conseqüências de tal desastre.
Bastam esses três exemplos para assinalar aqui as numerosas coincidências que não podem ser devidas ao acaso. Os astros nada têm que ver, em si próprios, nessas interpretações, assim como as cartas entre as mãos dos cartomantes. Fabrícius, Tycho Brahé, Stoeffler, ao fazerem essas profecias, eram influenciados por uma faculdade de intuição secreta supranormal.
Sucede o mesmo com a intuição da sobrinha do Príncipe de Radziwill, relatada pelo redator dos Souvenirs da Marquesa de Crequi (1834):
“O Príncipe de Radziwill havia adotado uma das suas sobrinhas, órfã. Vivia em um solar, na Galícia, e nele havia grande sala que separava os compartimentos habitados pelo príncipe dos das crianças, de sorte que, para poderem comunicar uns com os outros, tinham de atravessar o salão aludido ou fazer caminho pelo pátio.
A jovem Inês, de cinco a seis anos de idade, soltava gritos lancinantes sempre que a obrigavam a passar pela sala mencionada. Apontava, com expressão de terror, enorme quadro suspenso por cima da porta e que representava a sibila de Cumas. Tentaram, durante muito tempo, vencer essa repugnância, que se atribuía a qualquer obstinação infantil, mas como de tal violência resultassem sérias perturbações, terminaram por permitir que a criança não entrasse na sala e ela, durante dez ou doze anos, atravessou, de boa vontade, ao frio e à neve, o vasto pátio ou os jardins, de preferência a passar pela porta que lhe provocava impressão intensamente desagradável.
A jovem condessa, já noiva, atingira a idade em que devia consorciar-se; houve, certo dia, recepção no solar. As visitas quiseram, durante a noite, entregar-se a quaisquer distrações e foram para o grande salão onde, de resto, o baile de núpcias se devia realizar. Animada pela juventude que a rodeava, Inês não hesitou em seguir os convidados; mas, mal tinha chegado ao limiar da porta referida, quis recuar, confessando o seu terror. Segundo o costume, fizeram-na passar em primeiro lugar, e o seu noivo, os seus amigos, seu tio, rindo-se da sua infantilidade, fecharam a porta atrás dela. A pobre menina tentou resistir e, ao agitar um batente da porta, fez cair o quadro. Essa massa enorme fendeu-lhe o crânio com um dos seus ângulos, matando-a instantaneamente.” [26]
Interrompo tais exemplos, porque este volume deve ter fim, pedindo mesmo desculpa de, um pouco apaixonadamente, os haver multiplicado, estando os meus leitores decerto convencidos.
Conclusão: o futuro pode ser visto.
No estado atual dos conhecimentos humanos seria inútil pretender explicar como esta visão se opera em nosso espírito, assim como as sensações que com isso se relacionam. Pensar-se-á que o subconsciente, o ser psíquico, no exercício das suas faculdades supranormais, tais como certas formas de clarividência e, especialmente, a presciência, se liberta das limitações do espaço e do tempo, isto é, das leis que regem o nosso mundo material. É assim que as coisas futuras lhe aparecem como estando no mesmo plano das coisas presentes e passadas. Tira o seu poder de leis ainda desconhecidas. E o fato, por mais inexplicável que seja, nada tem de inadmissível, se este ser ou organismo psíquico constitui a personalidade total e permanente do ser humano – personalidade que se alimenta das mais variadas e misteriosas fontes. Não haveria, pois, nesta ordem de idéias, a menor temeridade em supor que, sob certas condições favorecidas pelo sono, a hipnose ou estas e aquelas predisposições pessoais, influências dimanadas do mundo ignorado podem invadir o subconsciente e inspirar-lhe os conhecimentos que revela na descoberta de acontecimentos passados, presentes e, sobretudo, vindouros. Tanto durante a vida como depois da morte, a alma está mergulhada na atmosfera etérea de um mundo invisível.
O exame rigoroso dos fatos, a lógica mais cerrada, levam-nos à conclusão de que é impossível atribuir à matéria, ao cérebro, às moléculas cerebrais, a quaisquer combinações químicas ou mecânicas, a faculdade intelectual de ver sem os olhos, de pressentir os acontecimentos futuros, de saber o que se passa ao longe ou o que sucederá no porvir, fatos exteriores ao organismo corpóreo ou à ordem essencialmente mental. Estas observações provam a existência do espírito, dotado de faculdades intrínsecas independentes dos sentidos físicos.
Durante a existência terrestre, a alma está associada a um cérebro apropriado às suas funções. Mens sana in corpore sano.
Se a alma não é uma produção do cérebro, se se distingue do sistema nervoso cérebro-espinal, se existe por si mesma, não há razão alguma para que se desagregue com ele.
Determinados fenômenos, tais como as leituras de textos desconhecidos, comprovam a existência de um espírito dotado de faculdades especiais. Esse espírito pode ser o nosso e não está provado que haja nisso intervenção de espíritos alheios aos dos indivíduos que realizam as experiências. Todavia, a hipótese mantém-se. Porque, se o espírito sobrevive ao túmulo, existe ainda em qualquer parte, e se o nosso espírito pode descobrir uma coisa escondida durante a nossa existência, por que perderá tal poder depois da morte?
É precisamente por atribuirmos à ação do nosso espírito a produção desses fenômenos que devemos aceitar também a possibilidade de sua ação ulterior e comparar as duas hipóteses, para apreciar qual é a mais simples. Ora, a circunstância dessas leituras, dessas adivinhações, dessas previsões, dessas ações psíquicas, dessas comunicações espíritas se realizarem sem que duvidemos delas, em plena inconsciência da nossa parte, põe perante nós uma complicação tão grande como a hipótese de espíritos exteriores ao nosso.
Parece, na verdade, que se encontram em jogo estes dois elementos: as nossas próprias faculdades metafísicas e por vezes a ação de espíritos invisíveis. Não sejamos exclusivos.
Vogamos em pleno mistério, e esse mistério impõe-se à nossa sede de saber.
Admitir apenas os fatos explicáveis, no estado atual da Ciência, é um grande erro. A impossibilidade de se poder explicar uma observação nada prova contra a sua autenticidade. Os sábios deviam ter sempre presentes os seguintes reparos de Arago, a propósito da história dos aerólitos:
“Os chineses acreditavam que as aparições dos aerólitos andavam ligadas aos acontecimentos contemporâneos, e eis por que eles os catalogavam. Não sei, de resto, se teremos o direito de nos rirmos de tal preconceito. Eram, porventura, mais sensatos os sábios da Europa, quando, recusando-se à evidência dos fatos, afirmavam que eram impossíveis as quedas de pedras vindas da atmosfera? Não declarou a Academia de Ciências, em 1769, que a pedra apanhada no momento em que caiu próximo de Lucé, por muitas pessoas que a haviam seguido com os olhos, até ao instante em que tocou o solo, não tinha caído do céu? Finalmente, a ata da sessão da Municipalidade de Julliac, declarando que, a 24 de julho de 1790, caiu nos campos, nos telhados das casas, nas ruas da aldeia, uma grande quantidade de pedras, não foi tratada na imprensa da época de conto ridículo feito para excitar a comiseração, não somente dos sábios, mas de todas as pessoas razoáveis?
Os físicos não querem admitir senão apenas fatos de que entrevejam uma explicação mais prejudicial, certamente, ao progresso das ciências do que a dos homens a quem se pode censurar uma credulidade demasiada.”
Quantas vezes não tenho eu repetido que se labora em completo erro ao julgar-se que não deve ser admitido um fato que se não possa explicar! Compreender ou não um fenômeno nada prova contra a sua existência. Isto mesmo já Cícero o dizia.[27]
Um fato incompreensível nem por isso deixa de ser um fato; mas uma explicação compreensível não é uma explicação. As faculdades mentais que acabamos de ver em laboração provam que existe no ser humano um elemento psíquico diferente do organismo físico, vendo através do tempo e do espaço, penetrando o invisível; e para o qual tanto o futuro como o passado podem ser o presente.
Estudamos aqui o mundo da alma que não é lícito desconhecer.
Para resolver o mistério da morte, para estabelecer a sobrevivência da alma, é preciso convencermo-nos primeiramente de que a alma existe, individualmente, existência demonstrada por faculdades especiais, extracorpóreas, que não podem ser assimiladas a propriedades do cérebro material, a reações químicas ou mecânicas; faculdades essencialmente espirituais, como a vontade atuando sem a palavra, a auto-sugestão produzindo efeitos físicos, os pressentimentos, a telepatia, as transmissões intelectuais, a leitura num livro fechado, a vista pelo espírito de uma região longínqua, uma cena ou uma ocorrência futura, todos os fenômenos fora da esfera de ação do nosso organismo fisiológico, sem medida comum com as nossas sensações orgânicas e provando que a alma é uma substância que existe por si mesma.
Espero que esta demonstração fique rigorosamente feita.
As observações psíquicas provam que o Universo não se limita às coisas que os cinco ou seis sentidos derivados da nossa hereditariedade animal atingem. Existem outras ordens na Criação.
Estando estabelecida a existência pessoal da nossa entidade espiritual, iremos estudar agora, com idêntico método experimental, os fenômenos associados à própria morte, as manifestações de moribundos, as aparições de vivos ou mortos, a constituição do ser psíquico, as casas endemoninhadas, as comunicações de finados, as provas de sobrevivência do átomo psíquico, o corpo etéreo. Tudo o que precede pertence à vida.
Chegamos, neste ponto, ao que respeita à morte e ao que se prolonga para além da derradeira hora corpórea.
Esta síntese espiritualista nova encontra-se assim dividida em três partes, sucedendo-se logicamente:
      I – Antes da morte: Provas da existência da alma;
     II – Durante a morte: As manifestações e aparições de moribundos; – Os duplos; – Fenômenos do Ocultismo;
   III – Depois da morte: As manifestações e aparições de finados; – A alma em seguida à morte.
A segunda e a terceira partes estão concluídas, como esta, e serão publicadas consecutivamente. O único fim deste trabalho, a única ambição do autor é que este conjunto facilite, tanto quanto possível, no atual estado da ciência positiva, a satisfação desejada por tantas aspirações legítimas para o conhecimento da Verdade.
Este primeiro volume de uma obra muito complexa prova a existência da alma humana, independente do organismo corpóreo. É este, segundo creio, um fato adquirido da mais alta importância para toda a doutrina filosófica.

– Fim do Primeiro Volume –


Notas:


[1]     Antiga Revue des Revues, hoje Revue Mondiale.
[2]     Pela minha parte, dediquei-me ao mesmo protesto desde a minha primeira obra (1862), quando tinha vinte anos. Bem inutilmente também, tanto a tolice humana é universal.
[3]     Conheço outra análoga, relatada por Lombard de Langres.
[4]     Laplace – Ensaio filosófico sobre as probabilidades. Paris, 1814, pág. 2.
[5]     Edição francesa, pág. 289 – Foissac, A Sorte e o Destino, pág. 212.
[6]     De Divinatione, lib. I, cap, 55.
[7]     Há perversos que sabem muito bem que fazem o mal de propósito. Tive mais de uma vez a prova disso, apesar de haver consagrado a minha vida inteira ao bem da humanidade. Nunca esqueci que, na época em que lecionava um curso regular de astronomia popular (de 1865 a 1870) aos operários de Paris, na Escola Furgot, curso gratuito tanto para eles como para mim, tive, apesar de bastante desprovido de dinheiro, a ambição de comprar uma linda estatueta de Vênus de Médicis, que havia notado em casa de um moldador. Custara-me quinze francos. Levava-a junto ao meu peito com grande satisfação, quando um garoto se atirou, por detrás, sobre o meu cotovelo, rindo a bandeiras despregadas quando viu a minha estatueta em pedaços no passeio. E, entretanto, era para instruir os seus humildes irmãos que eu lecionava esse curso.
[8]     Vemos que os escritores contemporâneos, na sua maior parte, imaginam que a discussão de determinismo é teoria filosófica de invenção moderna. Não é exato. Se abrirmos o tomo 1º da Palingenesia Filosófica de Charles Bonnet (Genebra, 1770), lemos à página 33:
      “Nunca disse, porque nunca o pensei, que os motivos determinam a alma a atuar, como um corpo determina outro a mover-se. O corpo por si mesmo não tem ação; a alma tem em si um princípio de atividade, que lhe vem d’Aquele que a fez. Para falar com exatidão, os motivos não a determinam; ela é que se determina à vista dos motivos, e esta distinção metafísica é importante.
[9]     Conhece-se grande número de observações sobre a relatividade das nossas impressões acerca do tempo, que nada têm de absoluto. Aqui temos uma, entre mil:
      O meu saudoso amigo Alphonse Bouvier contou-me diversas vezes, e sempre nos mesmos termos, a seguinte observação acerca da relatividade das nossas impressões sobre o tempo:
Encontrando-se na Argélia, bordejava um dia, a cavalo, um barranco bastante fundo. Devido a uma causa que não pôde examinar, a montada tropeçou e caiu, com ele, no barranco, donde o levantaram desmaiado. Durante a queda, que não levou mais de dois ou três segundos, desenrolou-se-lhe clara e lentamente no espírito sua vida inteira, desde sua infância até sua carreira militar, os seus brinquedos de criança, as suas aulas, a sua primeira comunhão, as suas férias, os seus estudos diversos, os seus exames, a sua admissão na escola de Saint-Cyr em 1848, a sua vida no quartel, na guerra da Itália, no regimento de lanceiros da guarda imperial, nos spahis, nos carabineiros, no castelo de Fontainebleau, os bailes da imperatriz nas Tulherias, etc. Todo esse lento panorama se havia desdobrado em menos de quatro segundos, pois reanimou-se imediatamente.
[10]   V. o que observamos no cap. IV, a respeito de uma conversa com um cardeal francês, sobre a presciência divina e o livre arbítrio.
[11]   Schopenhauer – Memórias sobre as Ciências Ocultas, Leymarie editor, pág. 170.
[12]   Foi publicado, com todos os pormenores, nos Anais das Ciências Psíquicas, de outubro de 1910.
[13]   Eis aqui o resultado oficial do escrutínio:
            Votos expressos ......... 845
            Maioria absoluta ........ 423
      Obtiveram:
            Casimir-Périer ............ 451. votos – Eleito
            Brisson ........................ 195
            Dupuy ........................... 97
            General Fevrier ............ 53
            Diversos .......................... 2
[14]   Contribuição para o estudo de faculdades cerebrais desconhecidas.
[15]   A Sorte e o Destino, Paris, 1876, pág. 544.
[16]   Anais das Ciências Psíquicas, agosto de 1905.
[17]   Fenômenos premonitórios, pág. 77.
[18]   Lenglet-Dufregnoy – Compilação de dissertações, 1752, t. II, 2ª parte, pág. 1.
[19]   V. Valére Maxime – De Somnis Romanorum.
[20]   Boletim do Instituto Geral de Psicologia, janeiro e junho, 1919.
[21]   O Pároco de Ars, pelo rev. Alfredo Monin, t. II, pág. 500.
[22]   Que voz era essa? Temos ouvido outras nos relatos precedentes: a da dama de Edimburgo, há um instante apenas (pág. 405), a voz telefônica do pastor sueco (pág. 385), a do Sr. Dufilhol (pág. 380), a voz interior anunciando a eleição de Casimiro Perier (pág. 355), o Sr. Fryer ouvindo seu irmão a 64 quilômetros de distância (pág. 206), a audição telepática do Dr. Balme (pág. 204), a do Dr. Nicólas em Zante (pág. 201), a voz de um pai a seu filho, a 100 quilômetros (pág. 184), uma mãe que estava na Inglaterra, ouvindo seu filho em Java (pág. 174), lamentações ouvidas com 24 horas de antecedência (pág. 382), voz de Joana d’Arc (pág. 119), rapariga do banho (pág. 117), fantasma do Sr. Marichal (pág. 101), vozes evidentemente fictícias, mas de origem psíquica.
[23]   V. Ernesto Bozzano – Fenômenos Premonitórios, pág. 408.
[24]   V. O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, pág. 564.
[25]   Revista de Estudos Psíquicos (Valparaiso) – Anais das Ciências Psíquicas, abril, 1911.
[26]   Champignon – Fisiologia e Metafísica do Magnetismo, pág. 352.
[27]   “Quereis ter a explicação das coisas? Muito bem; mas a questão não é esta. São elas reais? Eis o que pretendemos saber.
      Como assim? Dir-te-ei que o ímã é um corpo que atrai o ferro e se lhe agarra; mas, como não poderei dar-te a razão disto, tu negas!” – (De Divinatione, lib. I, cap. 39).


Camille Flammarion

A Morte e o seu Mistério

Traduzido do Francês
La Mort et son mystère
1917

(obra em 3 volumes)




 

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