sexta-feira, 13 de abril de 2012

O SERMÃO DA MONTANHA






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O SERMÃO DA MONTANHA

A lei do “tudo-ganho”. Evangelho e evolução. Versão moderna do sermão da Montanha. A virtude da renúncia. O desprendimento dos bens. A esmola. A Divina Providência.



Para melhor compreendermos os fenômenos de que estamos tratando é útil explicar como já exis¬ta em germe e como funcione também em nosso mun¬do de tipo AS, uma lei elementar de justiça que cha¬mamos: lei do "tudo-ganho". Não se trata senão de um aspecto particular da grande Lei de Deus da qual falamos nos capítulos precedentes. Estamos sobre o terreno positivo de leis vigentes, cujo funcionamento é controlável pela observação. Só assim se pode chegar a conclusões objetivas baseadas sobre fatos, independentes das verdades de grupos ou escolas particulares.
Constata-se no funcionamento da vida um princípio de justiça pelo qual é estabelecida uma proporção entre o trabalho e a sua recompensa, entre esforço e gozo. Este se prende à  satisfação de uma necessidade e desaparece com a saciedade. Quanto mais possuímos de uma coisa, menos ela vale, e quanto menos dela possuímos, mais vale. Este é um princípio de economia, que regula a balança da procura e da oferta. Quanto mais uma coisa nos custa esforço, mais valor tem, e quanto menos nos custa esforço, menor é seu valor. Assim os ricos se habituam à riqueza e esta, que para o pobre poderia constituir uma fonte de felicidade, na realidade não os torna absolutamente felizes. Eis que podemos possuir tudo e morrer de tédio devido à  saciedade.
Assim, a medida de nosso gozo não é dada pela medida de nossas posses, mas pelo esforço que fizemos para consegui-lo. A vida é dirigida também por esta lei de justiça, pela qual a alegria de possuir diminui a cada unidade possuída, isto é, em proporção inversa ao aumento da posse. Esta é a lei do "tudo-ganho". A justiça consiste no fato de que, se não se faz o esforço para se conseguir um gozo, não se tem direito a ele que, por isso, não é alcançado. Para que a coisa seja sã e vital é necessário que ha¬ja proporção entre o esforço e o gozo. Se este não é merecido, ele é um furto que, em virtude da mesma lei de justiça constituíra uma dívida a pagar. Então o gozo não é são e vital, mas doente e anti-vital, e a vida se revolta contra o indivíduo que dele se aproveita contra a justiça. Não faltam as vias gra¬tuitas para se chegar ao gozo e estas são os atalhos do prazer. O mundo os conhece de sobra. Mas, então, a vida se vinga e as fáceis alegrias do vício se pagam bem caro.
Apliquemos agora este princípio ao fenôme¬no da riqueza. Para ser sã e vital ela deve ser conforme a justiça. De outra forma ela é doente e an¬tivital e a vida se revolta contra ela tendendo a destruí-la em quem a possui. Eis então que a riqueza para ser um bem deve ter sido ganha, isto é, merecida. Senão ela é deteriorada e venenosa. O que é de sinal negativo não pode trazer alegria mas somente dor. É necessária, então, que ela seja de sinal posi¬tivo, conforme a justiça. Para ser dessa forma é indispensável que a riqueza esteja ligada ao traba¬lho. Então ela se torna produtiva e saudável e por isso é lícita. A vida quer a nossa salvação e segun¬do a sua moral sé é lícito aquilo que é vital, sendo ilí¬cito tudo o que é antivital.
A vida, pois, não é contra a riqueza, mas o é apenas contra a riqueza-furto, contra a exploração, contra a renda herdada sem esforço e gozada ocio¬samente, contra a riqueza parasitária, a qual é improdutiva para a coletividade e por isso danosa. A vida quer a riqueza produtiva, que se associa ao trabalho por ser fruto dele e admite também a riqueza hereditária, isto é, recebida gratuitamente, desde que seja a mesma fecundada por novo trabalho. A vida quer uma riqueza conforme a justiça. A que for injus¬ta é negativa, perniciosa para quem a possui, é uma força lançada em direção anti-vital, uma planta de¬teriorada desde suas raízes, um débito a pagar.
Eis o que querem dizer as palavras de Cristo contra os ricos, pois, refere-se, com elas, ao tipo de ri¬queza maldita que Ele aconselha abandonar. E com¬preende-se que é um sábio conselho libertar-se de tal desgraça antes que ela nos envenene. O tipo de rico a que Cristo se refere é o da sua época, aquele que todos tinham então diante dos olhos, rapinador de bens, opressor de escravos, crápula e ocioso. Cristo não é contra a riqueza, mas contra o mau uso dela. Como podia aquele tipo de rico entrar no Reino dos Céus e uma tal riqueza não ser condenada?
Há rico e rico. Há, por isso, também o indus¬trioso produtor de bens úteis à sociedade, por isso mesmo laborioso e organizador de fecundo trabalho para os outros. Tal riqueza é uma benção de Deus, uma coisa que é culpa abandonar, porque esse abandono eqüivaleria a um recesso na produção. Nos tempos de Cristo se ignorava a valorização do trabalho que caracteriza a moderna organização. Era somente esforço de escravos, opressão sem ganho. Nesse regime social qualquer refor¬ma concreta era impraticável. Que podia restar a Cristo, para afirmar de qualquer modo o princípio da Justiça, senão apelar para um outro mundo onde se podia pensar que a mesma fosse possível?
É assim que o Evangelho procura estabelecer o principio de Justiça dizendo: "Ai de vós, ricos, por¬que já tivestes a vossa consolação (....). "Ai de vós que agora rides, porque mergulhareis na dor e nas lágrimas" (....), e, logo em seguida, acrescenta: "Aben¬çoados vós que agora chorais, porque rireis (....). Naquele dia ficareis alegres (....), porque eis que uma grande recompensa vos é reservada no Céu" (....), eis o que quer a Justiça que os ricos que gozaram e riram, chorem; e que os pobres que choraram, riam; recebendo sua recompensa. Tudo na vida é coloca¬do na balança e é pesado. Com isto o Evangelho expressa uma fundamental sede de justiça que faz parte da Lei de Deus.
Vimos que as leis biológicas vigentes na Ter¬ra entendem a justiça noutro sentido, isto e, que. o valor e o merecimento esperam ao vencedor na luta e não ao mais justo. Será, então, que o Evangelho nos engana e que o Sermão da Montanha não é ver¬dadeiro? Não. Há dois tipos de justiça, um num bai¬xo nível evolutivo, o vigente na Terra, e outro num mais alto nível, próprio de ambientes mais evoluídos. De um primeiro confronto entre o Evangelho e a rea¬lidade da vida em nosso planeta, pode parecer que o Evangelho não tenha razão e que não passe de um sonho irrealizável. Para compreender é necessá¬rio colocar cada coisa. no seu justo lugar. O Evange¬lho não expressa a nossa realidade atual, mas uma outra mais evoluída, ele é uma ponte lançada em di¬reção a ela para alcança-la, é um farol longínquo que orienta o caminho. É assim que o Evangelho é utó-pico e anacrônico só em relação ás involuídas leis biológicas de nosso mundo, mas não o é perante a Lei de Deus que sabe, todavia, funcionar perfeita¬mente na Terra, no baixo nível evolutivo desta.
Eis que o Sermão da Montanha é absolutamente verdadeiro. O defeito não está no Evangelho, mas no homem involuído, incapaz de compreendê-lo, mas que por esta sua incapacidade não pode eximir-se de pagar as conseqüências  dos erros que comete na sua ignorância do verdadeiro estado das coisas. Aquele "Ai de vós oh! ricos" e aquele "Benditos vós que agora chorais", expressam reações positivas das Leis que, mesmo depois da vida atual, inexoravel¬mente entram em jogo fazendo justiça, como prêmio e como pena, conforme aquilo que foi feito. Eis o que significa o Sermão da Montanha. Trata-se de uma lição a aprender. O involuído atual é como se tives¬se uma pele de crocodilo, dura como uma couraça. A Lei, submetendo-o a lições corretivas aplicadas à  guisa de golpes de formão, deve conduzi-lo até que não reste senão uma pele sutil e sensível como a de um anjo.
Esta incapacidade de compreender as leis de um outro plano de evolução como antigamente, em um mundo de cristãos, portanto seguidores do Evan¬gelho, os ricos em vez de chorarem porque como tais condenados por Cristo ao Inferno, ao contrário da¬quilo que diz o Evangelho, se alegram e, não obstan¬te esta sua terrível desgraça, são até invejados pelos pobres. Então o Evangelho não convence ninguém. E como se explica que os pobres, que são tão afortunados por serem destinados ao Paraíso que é felicidade eterna, não se sentem nada felizes por esse fato e choram invejando os ricos, que são tão desventura¬dos por serem destinados ao Inferno, que é pena eterna? Como a própria Igreja se aliou sempre aos ricos e poderosos, isto é, aos condenados ao Inferno? Mas então se Cristo era tão bom e tão piedoso deve¬ria ter consolado os ricos que são os verdadeiros des¬graçados, porque após gozarem pouco sofrerão eter¬namente, e deveria censurar os pobres, que são os verdadeiros afortunados, porque após sofrerem pou¬co gozarão sempre! Então santos deveriam ser os ricos que se sacrificam por pagar tão caro pouca ale¬gria e pecadores deveriam ser os pobres que desfru¬tam a situação gozando tanto com tão pouco sofri¬mento! De outro modo onde estaria a justiça da Lei? Pois, enquanto esta quer que haja proporção entre trabalho realizado e prêmio recebido, neste caso, em vez disso, os ricos perderiam e os pobres ganhariam demais. Mas como podia Cristo oferecer justiça na Terra onde vigora a lei da força, enquanto a justiça é coisa que pertence a planos de existência mais evo¬luídos? Eis então que se Cristo queria justiça, não po¬dia procurá-la em baixo nível, na Terra, mas nos céus, isto é, em mais alto nível de evolução. Assim Cristo propôs aquela que era a única justiça existen¬te, procurando fazê-la descer sobre a Terra. Ora, de¬veria propô-la em forma de ideal, projetada para o futuro, sem permitir que se cumpra o erro que, dada a natureza humana, é inevitável, para não ter que corrigi-lo, mediante sanções, num segundo tempo e em outro ambiente. É assim que nos explicamos o fato de que, não obstante tantas ameaças, os ricos não se preocuparam com um hipotético Inferno, e os pobres não se sentiram satisfeitos com a promessa de um hipotético Paraíso. O que aqui interessa é o que está presente, material e não o que é longínquo e inatingível. Para ver tais coisas é necessário uma outra vista que o homem não possui. De fato ele aprende somente com a técnica do erro e da expiação.
Será, então, irrealizável toda Justiça sobre a Terra? A vida procura todavia realizar algumas apro¬ximações, nos limites das condições ambientais. Já vimos como a Lei procura aplicar na Terra o princí¬pio de justiça, fazendo pagar o mal feito, isto é, ensi¬nando a custo de. duras lições. Vimos, outrossim, co¬mo há na vida uma tendência natural que leva o rico ocioso a perder as suas riquezas e o pobre dinâmico a apossar-se delas suplantando-o. Isto sucede automaticamente porque o primeiro, dado o tipo de vida que leva, torna-se inepto, destinado portanto a perder, e o segundo, sendo obrigado a lutar e assim a  aprender, torna-se, por isso, apto a vencer. Esta tendência da vida corresponde a um princípio de justiça e expressa aquilo que neste sentido as Leis biológicas espontaneamente tendem a realizar. Tra¬ta-se de um fenômeno bastante comum que se verifi¬ca não só para casos individuais, pois estende-se a famílias e a inteiras classes sociais. Há um ciclo de ascensão, de florescimento e por fim de fatal desci¬da, fases características do fenômeno. O mesmo de¬senvolvimento e fim das civilizações seguem este ciclo. Isto porque persiste sempre a expectativa da eventualidade que os estratos inferiores, emergindo de baixo, assaltem os antecedentes vencedores, em¬balados na sua cômoda posição de bem estar. Des¬moronou a potência do Império Romano com a des¬cida dos bárbaros, assim como foram liquidadas as aristocracias com a Revolução francesa e com a russa.
É dessa forma que, automaticamente, se com¬pensam as duas opostas injustiças, a do rico que não trabalha e a do pobre que tem fome. Assim o rico deixa a ociosidade e o pobre se sacia. Da mesma forma a vida com um lento trabalho de erosão elimina a injustiça. Quando a justiça prevalecer, permanentemente, não haverá mais razão para as revoluções. Por este caminho se pode chegar à  completa e prática aplicação do Evangelho. Eis então que, biologica¬mente entendido, isto é, segundo as leis da vida, o Sermão da Montanha permanece verdadeiro. Eis como ele pode repetir-se em forma realista, como ho¬je ele pode ser entendido em sua prática atuação terrena.
"Benditos vós que sois pobres e portanto ho¬je sofreis pela injustiça social, porque é vosso o rei¬no da justiça que o mundo se prepara a realizar. Benditos vós que agora tendes fome, porque conquistareis o direito a uma justa repartição dos bens e sereis saciados. Benditos vós que agora chorais, por¬que rireis. Isto pelo fato de os ricos ociosos serem destinados a enfraquecer-se no bem estar, devido a sua vida fácil, de gozo. Então vos será fácil suplantá-los e substitui-los na sua posição. Nesse dia alegrai¬-vos, estremecei de euforia, porque eis que uma gran¬de recompensa vos está reservada, não mais apenas em forma nebulosa nos Céus, mas até sobre a Terra em forma utilitária e concreta.
Mas ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa recompensa. Gozastes a ociosidade bastante e assim a justiça da Lei vos fará passar a classe dos pobres. Ai de vós que sois saciados, porque tereis fo¬me. A vossa vida de gozadores vos tornará ineptos a defender-vos, os pobres que dominastes vos assal¬tarão, vos sacudirão das vossas cômodas posições e nelas vos substituirão para gozar em vosso lugar. Aí de vós portanto, que agora ris, porque ficareis na dor e nas lágrimas...
Eis como hoje, à  realista mente moderna, pode soar o Sermão da Montanha, em forma positiva e controlável, praticamente realizável, sem vagos re¬envios a sanções remotas, num mundo que não se conhece. E desse modo que aquele Sermão permanece verdadeiro e atual, aplicado à moderna luta pela justiça social, de acordo com as leis biológicas vigentes. A vida é realizadora e não pode ficar para sempre no terreno das afirmações teóricas. No seu utilitarismo ela as aceita só como fase preparatória de sua efetivação. A vida as propõe como ideal a realizar e põe-se a caminho para alcançar aquela realização. A Lei quer chegar à  justiça. Os homens falam, a Lei funciona. De um lado as palavras, de outro os fatos. A vida hoje quer realizar, a fase da espera é superada e não se aceitam mais soluções hipotéticas e realizáveis a longo prazo. Hoje os pro¬blemas não se escondem para que não se vejam, jul¬gando assim tê-los resolvido, mas se enfrentam e se resolvem.
Cristo não podia usar tal sistema, os tempos não eram maduros como o são hoje para sua realização. Se Ele tivesse falado como hoje se costuma, teria incitado à  violência sem nada obter, porque o poder que Ele condenava era bastante forte e toda a sociedade estava organizada de modo a reprimir todo anseio de justiça. Cristo tinha o dever de reco¬nhecer os direitos dos escravos, mas ao mesmo tem¬po devia aplacá-los, coisa que Ele não podia fazer senão com a promessa de compensações celestes, cuja conquista não dependia de sua revolta, mas de sua paciência. Outra coisa, dada a sua imaturidade de seres subdesenvolvidos, não se podia então exigir. Eles eram absolutamente incapazes de fazer uma re¬volução construtiva, porque demasiadamente invo¬luídos para se colocarem no lugar dos seus patrões.
Estamos observando como o pensamento da vida dirige tais fenômenos. Ela não conhece direitos a quem não tenha as qualidades necessárias para sabê-los conquistar e depois usá-los bem. Isto só é possível hoje que as classes mais desprovidas alcan¬çaram uma certa consciência e capacidade de organização. Os primitivos não sabem fazer outra coisa senão uma guerrilha que nada constrói e resolve. E esta teria sido apenas uma dispersão de energias, coisa que à vida não interessa. Assim, a palavra de Cristo foi um reconhecimento de direitos, mas não com o objetivo de fazê-lo valer, mas como exortação a suportar uma situação injusta. Se isto redundou também num implícito encorajamento aos opressores a persistirem em seus métodos, toda a culpa foi dos imaturos, aos quais certos direitos não podem ser concedidos. Pela lei do "tudo-ganho" é justo que não possa gozar direitos quem não os tenha merecido. Os primitivos têm necessidade de serem guiados e não podem comandar, porque o seu instinto é de rebaixar tudo ao seu nível. Para ter direitos é necessá¬rio ter conquistado o direito de ter direitos. Isso só pertence a quem é biologicamente útil, em sentido evolutivo, e é negado ao involuído que tende a fazer retroceder em vez de avançar. A vida sustenta só quem serve aos seus fins. Então para os imaturos, não resta senão a resignação e a esperança, como propõe o Evangelho.
Hoje estas virtudes de renúncia não servem mais e a elas se substituiu a do trabalho, virtude dinâmica e produtiva que implica no desenvolvimento da inteligência. Hoje não estamos mais na preceden¬te fase de espera e de subterrânea maturação, mas numa fase de florescimento da vida que avança. Depois da fase de incubação da Idade Média chega-se agora á da realização. Já não se perde mais tem¬po a renunciar e a impor-se penitências, mas se tra¬balha e se produz, lançando as bases do bem estar material sobre o qual se possa construir uma nova civilização.
O Evangelho chegou a nós depois de ter atravessado os tenebrosos séculos da Idade Média, em que a vida estava reduzida como que a uma for¬ma de desespero, a ponto de ser concebida em senti¬do negativo, como uma expiação de culpas inatas, como uma prova a suportar em vista da verdadeira vida que era uma outra, depois da morte, no Céu. "E tanto o bem que me espera que cada pena me é dileta", dizia S. Francisco. Então, a forma mental do¬minante a respeito da vida não foi de fecunda ativi¬dade, mas de absenteísmo e de evasão, sonhando para além dessa, uma outra vida melhor na qual houvesse salvação. A respeito da riqueza o próprio Evangelho tinha sugerido a atitude de renúncia. A vida hoje nos diz: trabalha. É verdade também que a vida atual não se pode valorizar senão vivendo-a em função de um seu futuro maior. Mas é pernicioso desvalorizar a vida terrena que tem a sua grande função construtiva também em sentido terreno. Pelo fato de se conceber a vida também neste sentido, se deve o progresso e a civilização, que são ótimos meios para conseguir, também no Céu, um futuro melhor. Não se sabe como seja possível construir no Céu uma humanidade de penitentes, que nada tenha sabido construir na Terra.
O Evangelho pareceria aconselhar-nos o des¬prendimento dos bens, propondo jogar fora as pos¬ses na Terra e acumular outras no Céu, abandonan¬do-nos imprevidentes nas mãos de Deus. A esta voz responde a da vida com as suas prementes necessi¬dades materiais que não admitem dilações, e com as suas severas sanções contra quem não observa a sua lei de luta pela sobrevivência. Cristo conhecia muito bem a realidade do mundo espiritual no qual ele vivia, dando a impressão de ter esquecido a rea¬lidade do mundo material na qual, no entanto, ao homem cumpre viver. Para Cristo o Céu (S) estava próximo e atual, mas para o homem situado em ou¬tro nível evolutivo (AS), aquele Céu está longínquo e irreal. Para este resta o fato da tremenda proximida¬de do mundo terrestre, mesmo que seja seu dever e seu bem procurar aproximar-se tanto quanto possível do mundo espiritual de Cristo.
Cada um destes dois ambientes tem as suas leis e fazer descer o alto até em baixo é um emborca¬mento que pode produzir efeitos opostos aos deseja¬dos. O objetivo do desprendimento é o espirituali¬zar-se, mas isso pode terminar com um maior apego ao dinheiro. Só o rico pode permitir-se o luxo de se desinteressar dele, porque o possui em abundância. Se ele se torna pobre, eis que as necessidades da vi¬da o assaltam, e o dinheiro, que primeiramente para ele significava o supérfluo, torna-se uma questão de vida ou de morte. Se, antes, tendo dele em demasia podia ficar desprendido, agora, tendo pouco, ele de¬ve ser apegadíssimo se quiser sobreviver. A neces¬sidade de conseguir sobreviver o exige. E lei econô¬mica aquela pela qual uma coisa vale tanto menos quanto dela possuímos, e vale tanto mais quanto me¬nos dela dispomos. No primeiro caso o preço da mercadoria baixa, no segundo aumenta. É uma lei psi¬cológica pela qual a privação aumenta o desejo e que a saciedade o extingue. Com efeito, a proibição que nos priva de uma coisa, a torna mais desejada.
Eis que o Evangelho aplicado em nosso mun¬do pode resultar contraproducente, porque a privação em vez de produzir o desprendimento pode pro¬duzir um apego ao dinheiro. É na pobreza e não na riqueza que se aprende quanto custa consegui-lo. Do mesmo modo sucede com o jejum e com a castidade. São os esfomeados que pensam sempre em comer; é a abstinência forçada que faz pensar sempre no sexo. Assim, se o rico segue o Evangelho e dá tudo aos pobres, ele passa da abundância à  necessidade, isto é, do desprendimento ao apego. O rico pode ter tempo e energias para dedicar-se às coisas do espirito, não o pobre que está preso à preocupação avas¬saladora de se procurar os meios para viver. A ver¬dadeira pobreza  a indigência — é um degradante rebaixamento ao nível de vida animal que pode le¬var a um retrocesso involutivo e paralisar o desen¬volvimento da civilização. A verdadeira pobreza é abjeção em ambientes malsãos, é miséria também espiritual, é, antes de mais nada, negatividade destrutiva das construções da vida em nível mais alto, as quais são as primeiras a desmoronar.
Existe, pois, ainda um outro fato: se o rico é desprendido da sua riqueza, não lutará para defendê-la. Então num mundo de assaltantes, lhe rouba¬rão tudo. É necessário que ele tenha um certo amor pelas suas posses se quiser que as cuide e assim não as perca e não seja degradado ao nível de po¬bre. Tal desprendimento não seria considerado vir¬tude, mas inaptidão e desinteresse. A realidade é que a vida não recompensa de modo algum aquele rico, mas o degrada a posições de inferioridade.
O que de fato lhe acontece depois que virou pobre? O Evangelho regula o assunto dando-lhe tesouros no Céu. Ora, estes lhe servirão no Céu, mas não resolvem o problema terreno, que permanece sem solução. E o Evangelho acrescenta ainda que a quem trabalha para o Reino de Deus e sua justiça, o resto será dado por acréscimo e que portanto ele não deve preocupar-se com o amanhã. Estas palavras podem fazer crer que a Divina Providência interve¬nha automaticamente provendo a tudo, de modo que baste deixar-se servir. Assim não acontece, as esmo¬las podem não existir, e se existem, não caem do Céu; elas são incertas e não garantem o necessário para poder-se dedicar a outra atividade. Com tal in¬certeza não se pode traçar um plano de trabalho e segui-lo. Mas, pelo contrário, a Divina Providência exige um esforço contínuo para que um determinado plano de trabalho funcione.
E vamos considerar também o seguinte: se para o rico seus bens representam o fruto de um esforço pessoal, porque as riquezas não caem gratuitamente, será então justo que elas venham a ser gozadas por um pobre que nada fez, e provavelmente nada sabe fazer para merecer aqueles bens? Além disso, tolhendo àquele pobre o impulso da necessidade, aquela ajuda o instigará ao ócio. Logo, a esmola po¬de encorajar à preguiça petulante. A esmola pode encorajar os pobres ao parasitismo. Estes, porque pobres, iriam para o Paraíso — mas ficando no ócio porque providos do necessário — enquanto os ricos que os sustentam com o seu esforço, iriam para o In¬ferno pelo simples fato de serem ricos? Para cada santo a enviar para o Céu, deveria haver um diabo rico que, na Terra, o mantivesse. Como se vê, no caso prático é necessário distinguir um rico do outro e um pobre do outro, porque nem todos são iguais. Mas o próprio Cristo moderou as. palavras acima referidas quando disse: "Quod superest date pauperibus". ("O que vos sobrar dai-o aos pobres"). Como se vê o problema não é tão simples assim, e não pode, por isso, ser resolvido simplesmente tomando ao pé da letra alguns trechos do Evangelho e esquecendo os demais.
CRISTO

Autor: Pietro Ubaldi

Tradutores: Manuel Emygdio da Silva
e
Romano Galeffi



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