segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ofendido e Ofensor-- Seus Destinos


O problema da justiça e do perdão. Apa­rentes contradições. O perdão não é injustiça. O método de pagamento de ti­po S a cargo da Lei. As vantagens do perdão: para o ofendido e para o ofen­sor. Involuído e evoluído. Duas verda­des e respectivos métodos de vida. A evolução sana a contradição. Recons­truir. A retidão, método de defesa con­forme o Evangelho.



Abordemos agora o problema da justiça e do perdão. Contra uma ofensa o mundo faz justiça com o método da reação e punição; o Evangelho com o do perdão. O primeiro é o sistema da luta, vigorante nos planos evolutivos mais baixos, os do AS, segun­do o principio separatista ali imperante. O segundo é o sistema da coordenação, o que vigora nos planos evolutivos mais altos (os do S) conforme o principio unificador ali imperante. Esta diferença se faz tanto mais evidente quanto mais se desce, de um lado, e quanto mais se sobe, do outro.
Diz o Evangelho: "Vós ouvistes que foi dito: olho por olho e dente por dente. Eu, pelo contrário, vos digo que não deveis fazer resistência ao malva­do (....). Ouvistes que foi dito: amarás o teu próxi­mo e odiarás o teu inimigo. Pelo contrário vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam (... ). Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros (....). Bem-aventurados os mansos (....). Bem-aventurados os misericordiosos (....). Bem-aventurados os pacíficos" (....).
O mesmo Evangelho põe em evidencia a contraposição entre os dois métodos de fazer justiça: o da sanção imposta contra o violador e o do perdão. Perguntemo-nos, agora: como resolver conforme justiça o método do perdão? Trata-se de dois conceitos absolutamente antitéticos. O perdão altera a relação e rompe o equilíbrio entre culpa e pagamento, entre erro e correção, assim ele paralisa a função saneado­ra da Lei. O perdão representa uma evasão das sanções, ou seja violação da Lei, fato que, conforme esta, deveria ser punido.
Eis os termos do problema:
1º — Há uma culpa, que é uma violação da ordem. Ela redunda num desequilíbrio que deve ser compensado num desvio, o qual por sua vez deve ser neutralizado e reconduzido à posição de equilíbrio.
2º — Há a justiça que exige e realiza este pagamento e, com o método da sanção primitiva, restabelece a ordem.
— O perdão, pelo contrário, é semelhante ao pagamento de uma dívida, mas não o realiza. Ele tão somente deixa ficar sem solução o problema do restabelecimento da ordem, como também aceita e confirma a violação da Lei.
Existe, portanto, uma inconciliabilidade en­tre justiça e perdão. Se a justiça consiste no não­-perdão, então o Evangelho que defende o perdão, pareceria propor a injustiça. Isto porque a Lei de Deus se baseia num fundamental princípio de equi­líbrio que no plano moral significa justiça. É por este princípio que se deve reconstruir a ordem violada, pelo qual o mal feito se deve pagar, o erro deve ser corrigido com a dor, o que foi deslocado ao negativo deve ser recolocado na sua justa posição ao positivo Ora, quando o ofendido perdoa, com isso ele induz o ofensor a violar tal equilíbrio, porque o mal feito des­te último não é pago e seu erro não é corrigido, pe­lo fato de, com o perdão, escapar à  sanção punitiva. E então, como se restabelece o equilíbrio da justiça, se o cômputo do dar e haver é alterado pelo perdão? Quando Cristo se encontrou diante do Pai, Ele se co­locou na posição de pagador perante a justiça da Lei e não pediu perdão. Ao contrário daquilo que faz o homem — que pleiteia o perdão para si sem conce­dê-lo aos outros — Cristo praticou em relação aos ou­tros, mas para si antepôs ao perdão a justiça. E com efeito Ele mostrou que os débitos se devem pagar.
Mas há mais. O próprio Deus se comporta conforme a sua Lei de justiça que exige o pagamento. Ele não usa o método do perdão quando, pelas ofensas recebidas, exige do homem um pagamento e, para que este seja executado, manda à Terra o Seu “Filho Unigênito”. Eis então que o Evangelho pregando o método do perdão em vez do justo paga­mento, parece ter-se colocado em contradição com o Filho e com o Pai. Mas será que o Evangelho ignora a Lei e se coloca contra ela? Afinal, qual das duas vias se deve seguir? A do pagamento obrigatório im­posto pelo Pai e praticado pelo Filho, ou a do perdão pregado pelo Evangelho?
Um caso de contradição não poderia ser vis­to também no fato pelo qual Moisés que havia descido do Sinai com o mandamento de não matar, es­crito sobre a Tábua, mandou matar três mil idólatras? Foram estas as palavras de Moisés: “Assim disse o Senhor, o Deus de Israel: Cada um tome a sua espa­da e passe de porta em porta, e cada um mate o seu irmão, cada um o seu amigo, cada um o seu próxi­mo. E assim foi feito conforme a palavra de Moisés, e naquele dia tombaram do povo, três mil homens”.
Não nos abalam estas contradições. O fato é que enquanto a Lei nos oferece princípios do S, o subconsciente humano propõe princípios do AS. Ve­mos uma tal evasão do pagamento com o perdão, encontrar confirmação também alhures, por exem­plo, no caso de São 'Tomás de Aquino, quando assim se exprime: "Beati in Regno Coelesti videbunt poe­nas damnatorum ut beatitudo illis magis compla­ceat". ("Os bem-aventurados, no Reino dos Céus ve­rão as penas dos danados, para que seja mais inten­sa sua própria bem-aventurança»).
É compreensível que tais sentimentos de egoísmo possam naturalmente aflorar do subconsciente humano em quantos se sentem imunes diante das desgraças dos outros. E compreende-se como o con­trole mental, bem mais reduzido no passado, deixas­se ingenuamente escapar confissões desta espécie. Mas que estes sentimentos — entre os comuns mor­tais — pudessem atribuir-se também aos eleitos do Céu, isso não é mais concebível hoje em dia. Seriam eles tão malvados a ponto de gozarem com os tor­mentos dos seus semelhantes? Como admitir que a perspectiva de tão iníqua alegria pudesse servir de encorajamento a fazer o esforço necessário no a con­quista do Paraíso? Os gozos celestiais consistiam por­tanto em violar o fundamental princípio do Evange­lho: "Ama a teu próximo como a ti mesmo"? O per­dão só serviria então para adiar a vingança ao além que ficaria provisoriamente incubada até a interven­ção de Deus, que ao cumpri-la viria a satisfazer à  nossa mesquinhez evitando-nos, com o esforço de persegui-la, o risco da reação por parte do ofensor.
Tais contradições nascem do fato de os prin­cípios que regem a religião e a moral como teórica norma de conduta, serem de tipo diverso dos que funcionam na realidade concreta. Mas como se justifica que os moralistas ignorem tal contradição e porque deveria haver antagonismo entre os dois mé­todos de vida? A situação é aquela tão freqüentemente registrada no mundo, que consiste em dizer uma coisa e fazer outra. De um lado temos a afirma­ção de altos ideais, do outro lado, uma realidade mes­quinha presente e imperante na vida de cada dia. Belas e luminosas nuvens que voam no céu, enquan­to na Terra se caminha sobre ásperas pedras. Belos os sonhos do espírito, mas quase sempre contraditos pelas imperiosas e massacrantes necessidades da vi­da. No alto resplandece a bondade e o amor, mas em baixo, no mundo, triunfa o mal e geme a dor. Quem vive feliz no Paraíso não sabe porventura que existe também o inferno e que nele se massacram seres vivos? Como podem os idealistas ignorar que a vida se baseia sobre a rivalidade e sobre o contí­nuo esforço da luta, e que em tal ambiente as suas teorias permanecem como inaplicáveis utopias? En­tão, se o perdão existe, o que significa e como se jus­tifica esta sua estranha economia tão contrastante com as leis da vida? Se esta se comporta tão diversamente, deve existir uma razão para tal. E a realida­de destas leis impõe que o mal feito seja pago, con­forme justiça.
Observemos como funciona o fenômeno. Em nosso mundo aquele pagamento pode-se obter tanto com o método do macho que reage como pessoa com as suas próprias forças sem pedir a ajuda de nin­guém, quanto com o método da fêmea, que, carente de forças, pede ajuda confiando a mesma sanção à  justiça de Deus. O primeiro é o método ativo, de rea­ção positiva ou da vingança; o segundo é um método negativo, passivo; mas ambos tendem ao mesmo resultado final, que é o de fazer pagar ao réu a sua culpa. No primeiro caso temos uma reação direta e imediata, no segundo uma reação indireta, reenvia­da no tempo, por delegação, a outros. Diversa é a forma, a substância é a mesma: a necessidade de pa­gar. Assim o perdão evangélico, na realidade, cor­responde à mesma necessidade de defesa, consegui­da, porém, com um método de tipo feminino, mais condizente com os fracos incapazes de se defende­rem sozinhos.
Depois disto, o Evangelho é espontaneamen­te aplicado pelo tipo feminino, ao qual portanto Cris­to não tinha necessidade de dirigir-se para ser obe­decido Dirigiu-se, pelo contrario, de preferência, ao tipo macho, aquele que mais repele o Evangelho, porque sabe defender-se por si, embora sendo ele quem do mesmo mais necessita para corrigir-se de sua tendência a se fazer justiça por si próprio — co­mo anárquico egoísta que é — em vez de obedecer a Lei. Mas, ao mesmo tempo, Cristo quis ajudar os débeis, os oprimidos e atribulados — que confiam a Deus sua própria defesa — mostrando-lhes que exis­te todavia uma justiça, também para eles, na qual podem confiar. É assim que vemos como a religião, mais que pelo tipo macho, seja seguida pelo tipo fê­mea, que nela encontra a proteção de que tem neces­sidade. Em primeiro lugar a defesa para a sobrevi­vência.
Esta é a realidade da vida, cuja economia esta bem longe daquela do perdão. Tal realidade é um fato. Para superá-lo não adianta ignorá-lo ou desprezá-lo, como se não existisse. Ele na prática constitui o que é norma neste mundo. E se o Evan­gelho afirma o contrario, significa isso porventura que aquela regra esta errada ou que é má? Mas co­mo pode a vida ser tal se ela é regulada por leis que coincidem com a própria vontade de Deus?
Procuremos compreender. A contradição nas­ce do mal-entendido pelo qual se acredita que, se com o perdão desaparece uma sanção visível e ime­diata, não exista por isso pagamento, e, portanto, de tal modo se cumpra a injustiça do não-pagamento. As referidas objeções nascem da opinião pela qual o perdão signifique subtrair-se à justiça com o não­-pagar, enquanto se trata de um diverso e mais per­feito modo de pagar, pelo qual se permanece sempre dentro da ordem da justiça, permanecendo sem­pre inviolada. Eis então que o método do perdão não representa mais um ato contra a justiça, mas um acordo com ela para que funcione de um modo ain­da melhor. Fiquem tranqüilos os que vêm no perdão uma impunidade do ofensor e com isso um evadir-se à justiça da Lei. Isso não pode acontecer, pois ela é inviolável. Então nos perguntamos: qual é a técni­ca segundo a qual se verifica este fenômeno?
A função de fazer justiça da maneira mais segura, adequada e completa, implica a presença de outros elementos, que não são apenas os usados pa­ra executá-la em forma simplista pelo único método da sanção punitiva. Além desta finalidade a Lei quer alcançar outras paralelas. O trabalho é com­plexo, o que exige uma sapiência que o sujeito nor­mal não possui. Daí a necessidade, em primeiro lugar, de tirar-lhe das mãos a função de justiceiro. Que ele portanto se ponha de lado e deixe traba­lhar a Lei. Então esta só lhe pede perdoar e colo­car-se fora do fenômeno, cuja direção de desenvol­vimento só pode ser confiada à  Lei. E quem compre­endeu como esta funciona, bem sabe o que ela pode fazê-lo.
Observemos primeiro aquilo que se dá com o indivíduo ofendido. Com o perdão este confia a rea­ção à justiça da Lei e assim se liberta de qualquer vínculo com o ofensor, que deste momento em diante fica entregue à lei. Este não se vai embora, como pode parecer, livre de sanções, sem pagar, pois en­tra na engrenagem das conseqüências dos atos que praticou. O ofendido, pelo contrário, com o perdão, retraindo-se da luta, logo encerrou a conta e não en­tra nesta engrenagem de pagamentos. O caso para ele esta liquidado. Na balança da justiça da Lei ele colocou o seu perdão, isto é, um crédito à sua van­tagem. Relembremos que a Lei funciona para todos os indivíduos seja onde for, onde quer que se en­contrem
Eis então que o poder do indivíduo não de­pende da sua potência terrena perante o ofensor, mas da sua posição perante a justiça da Lei. Trata-se de uma técnica de defesa completamente diferente daquela que o mundo segue. A conta individual entre ofensor e ofendido substitui-se a conta entre o indivíduo e a Lei de Deus. O primeiro é o método do AS, separatista, caótico, no qual o ser esta sozinho, con­tra todos e não tem em sua defesa senão suas forças, numa posição de contínua violação, injustiça e en­dividamento perante a Lei. O outro é o método do S: orgânico, feito de ordem, no qual o sujeito unificou-se com as forças da Lei que ele portanto possui para sua defesa.
Em tal posição o indivíduo se torna parte de um todo no qual ele se completa e se potencializa, dado que as forças da Lei, atraídas por afinidade, acorrem em proteção de quem se move em sintonia com elas. Isto porque a Lei se defende a si própria quando defende quem, obedecendo-lhe, se fundiu com ela e dela se tornou um elemento constitutivo.
Eis a vantagem do método do perdão: o de colocar-nos na ordem do S, em vez de na desordem do AS, com todas as conseqüências que daí derivam. Eis o significado e o grande valor utilitário da atitude que nos é proposta pelo Evangelho, que nos quer conceder uma posição de inocência, e portanto, de segurança na ordem, coisa que o desequilibrado sis­tema de luta no qual se baseia o AS jamais poderia garantir. É evidente que as forças do indivíduo, por mais potente que ele seja, não poderão nunca sustentá-lo e protegê-lo como podem, pelo contrário, as do grande organismo quando ele consiga integrar-se nele. Tudo isto é verdadeiro, grande, belo, mas é di­fícil fazê-lo compreender a quantos não tenham ainda construído olhos capazes de ver em profundidade.
Os dois termos do problema são ofendido e ofensor. Estamos observando os destinos de cada um dos dois. A preocupação do Evangelho é a de libertar o ofendido das conseqüências de uma sua reação pessoal que o ligue ao ofensor, iniciando com ele o cômputo do dar e do haver. Via de regra se tem pressa em fazer justiça por si, porque ao julgar o fenômeno, o homem míope se engana vendo apenas os efeitos imediatos ou a curto prazo, enquanto não vê os efeitos longínquos a longo prazo nos quais a justiça se cumpre. Acontece, com efeito, que a ime­diata reação pessoal provoca uma contra-reação, e assim sucessivamente ao infinito. Dá-se o mesmo com as guerras, todas projetadas para chegar a uma vitória definitiva, enquanto na realidade não se alcan­ça senão um perpétuo estado de guerra, em que ca­da uma delas não acaba nunca de castigar a injus­tiça da outra. O Evangelho tenciona resolver este problema quebrando ao seu início a cadeia de ações e reações, que imediatamente se estabelece quando se usa o método da força.
Naturalmente o Evangelho — como já vimos — fala aos fortes, levados a usar tal método e não aos fracos que não precisam receber conselhos de moderação porque não têm força para reagir. Mas, se estes forem justos, a Lei defenderá neles o próprio princípio da justiça. Quando o ofendido se encontra nestas condições, o ofensor não se acha mais apenas perante um homem, mas também perante a Lei que exige justiça. Isso implica uma grande disparidade de condições entre o ofensor e o ofendido, mesmo se o primeiro — quando forte e astuto — pode subtrair­-se à reação do ofendido; quando, porém este último perdoa e entrega sua proteção e defesa à Lei, para o ofensor não há mais salvação.
Mas também para este constitui uma vanta­gem o cair — mesmo que seja à força — em poder da Lei. A reação desta é diferente da do ofendido. Este só desabafa a sua raiva, obedecendo ao impul­so da defesa ou da vingança, o que não vence o mal mas o aumenta, porque à violência do ofensor se acrescenta à do ofendido, aumentando, assim, a de­sordem em vez de elimina-la. O escopo da Lei, pelo contrario, é o de reconstruir a ordem, e de fazer jus­tiça, de educar e salvar o ofensor, mediante a sua correção, constrangendo-o a reingressar no justo ca­minho.
Ora um semelhante trabalho não pode ser confiado ao homem, mas só à Lei que possui a sapiência necessária para podê-lo executar. Aqui fala­mos da Lei como de uma coisa viva, porque ela representa a onipresença de Deus. O método de vida em nosso mundo é completamente diverso do propos­to pelo Evangelho. O primeiro é de tipo AS e o se­gundo de tipo S. Isto significa que eles estão nos an­típodas. Eis que um trabalho de ordem e justiça não pode ser confiado aos cidadãos do AS, mas só a quem adere ao S, mesmo no caso em que tal traba­lho deva ser realizado no seio do AS. As reações des­te não sabem ser corretivas para o bem do ofendido, ao ponto de reconduzi-lo na ordem sobre a qual se apoia o S; pois são imbuídas de egoísmo e vingança, maléficos filhos da desordem, sobre a qual se apoia o AS. Logo, a função de cumprir uma verdadeira justiça não pode ser confiada ao homem, que não pode possuir todos os elementos para julgar, como só Deus pode, o único que pela sua superioridade tem para tanto a capacidade e o direito. E tanto me­nos tal função pode ser confiada ao ofendido, pois sendo parte em causa, não pode deixar de colocar a si mesmo no prato da balança em seu próprio favor. Assim, propondo-lhe o perdão, o Evangelho quer preservá-lo do pecado da injustiça do seu julgamen­to parcial.
Temos, então, uma forma de justiça por dele­gação, pela qual o homem não a exercita mas a con­fia à  Lei. Outra maneira não há se quisermos uma verdadeira justiça. Para quem vive no AS, não há outra salvação, a não ser apoiar-se no S, deste apli­cando os métodos. Isto é o que Cristo quis fazer, pregando a aplicação da Lei do Pai neste mundo.
Vimos o significado da contradição entre o Evangelho e a realidade da vida. Trata-se de duas verdades, cada uma relativa a um diferente nível evolutivo. Relativamente a seu próprio ponto de referência cada uma delas é verdadeira, mas o ponto de referência do Evangelho é a Lei, o mais alto termo do conhecimento, aquilo que para Cristo é o Pai e para todos é o S. Pelo contrario, o ponto de referência do homem é o seu mundo, situado muito mais em baixo, no AS. É natural que de tudo isto derivem dois opostos métodos de vida.
Estas duas verdades e os respectivos méto­dos de vida podem ver-se representados na Terra por dois tipos opostos, cada um expressando a sua ver­dade parcial em contradição com a do outro. O pri­meiro é o verdadeiro involuído movido pelos instin­tos mais baixos de nível animal. Ele é um imaturo que se encontra atrasado em relação ao grau de evo­lução alcançado pela atual sociedade humana, ape­sar de se encontrar em seu lugar em relação à socie­dade mais selvagem dos séculos passados. O segun­do é o evoluído, honesto, compreensivo, pacífico. Ele é mais que maduro, e assim se encontra antecipa­damente deslocado para a frente em relação ao grau de evolução alcançado pela nossa sociedade, mas com certeza ele se encontrara no seu devido lugar numa sociedade mais civilizada, nos séculos futuros.
Trata-se de dois extremos — ambos fora de série — um por defeito, o outro por excesso de adian­tamento. As massas, situadas à metade do caminho, formam o grosso do exército, em marcha ascensio­nal. Situados num tal ambiente de nível médio, am­bos os tipos são marginalizados. O primeiro deles acaba na prisão. O segundo é encurralado como so­nhador utopista, fora da realidade. Com efeito, ele é assim em relação ao tipo do mundo em que vive.
Mas diversa é a sua posição perante a Lei. En­quanto o primeiro é por ela canalizado à força pela du­ra mas salutar estrada do ressarcimento e, embora à força, é impelido para a frente com a técnica trifásica que explicamos no volume: A Técnica Funcional da Lei de Deus; o segundo, ao contrario, é secunda­do no seu esforço ascensional, pela Lei que o ajuda quando — apesar de querer — mais não sabe nem pode fazer.
Eis que compreendemos agora a razão que explica a aparente contradição entre as opostas verdades, problema que outrora nos parecia insolúvel. Porém tal contradição não só é explicável, mas tam­bém sanável. Isto é compreensível pelo fato de as nossas verdades humanas, assim como as nossas posições religiosas e morais, serem fases de transição, que sé colocam ao longo do caminho da evolução. Elas fa­zem parte de um processo de transformação cuja função é a de tornar sempre mais verdadeiro e atual na Terra, o ideal que no presente soa utopia. É com tal orientação que se compreende a verdade do Evan­gelho. Ele é uma ponte lançada pela vida em dire­ção ao futuro, ainda hoje em fase de tentativa de realização, contra o qual ainda resistem as leis bio­lógicas, num nível mais involuído, mas em relação ao qual, apesar de lentamente, vão cedendo, já in­troduzindo e assimilando o novo em suas entranhas. É por isso que as duas opostas verdades — a do Evangelho e a do mundo — poderão um dia coinci­dir. Eis aqui racionalmente reconhecida a função biológica de Cristo e da sua doutrina.
O nosso momento histórico esta todo empe­nhado no trabalho de destruir o velho. Mas sempre que se execute tal operação cirúrgica se corre o ris­co de matar o doente, enquanto o escopo dela deve ser o de curá-lo e fazê-lo viver ainda, pelo menos, o de salvar o salvável. A operação empreendida pela ciência materialista ficou pela metade parando na fase destrutiva. Mas ela há de ser levada a termo até o fundo, isto é, até a fase reconstrutiva, pois é esta a sua verdadeira finalidade.
Esta segunda parte que ainda não vemos realizada é aquela que tentamos, aqui, levar a cabo. E seu resultado final não será a demolição do Evan­gelho, mas a sua própria confirmação, não apenas em termos fideísticos como no passado, mas de ma­neira racional e positiva, como exige a mente moder­na se quisermos que do mesmo ela aceite a doutri­na. Tínhamos um Evangelho velho, não compreen­dido, cheio de superestruturas; um Cristo retórico e mitológico, fora da realidade, situado num mundo em que foi sumariamente liquidado e condenado sem se lhe compreenderem as leis e a função. Quisemos fa­zer do Evangelho algo atual, assimilado, um Cristo vivo, presente entre nós, situado na realidade de nosso mundo para levar o mesmo à frente e redimi-lo na forma necessária à  mente moderna e ao atual momento histórico.

*   *   *
Antes de abandonarmos este assunto quere­mos insistir no esclarecimento de um ponto que, pa­ra o homem habituado a um regime de luta, parece-nos o mais difícil de compreender. Trata-se de nos explicar como o perdão possa constituir uma técnica de defesa em vista da qual o indivíduo, que com este recurso aplica o Evangelho, não fique abandonado, como parece, nas mãos do ofensor. O ofendido, por sua vez, se pergunta: qual será, então, no sistema da Lei a minha arma de defesa? Respondemos que —embora possa isto parecer estranho — esta arma não é a força ou a astúcia, mas a retidão. Tratemos de compreender de que modo possa ser verdadeira tão estranha afirmação.
O universo, desde o plano físico ao espiritual, é um sistema orgânico, dirigido por um princípio de ordem que sempre melhor realizamos, quanto mais evoluímos. O evoluído — sendo mais avançado —se enxerta no aspecto orgânico do todo, deste seguin­do o princípio ordenador. Funciona, assim, dentro dele, conforme as normas da Lei, nesta inserido como o disciplinado elemento de um organismo. O involuído — sendo mais atrasado — se enxerta, pelo con­trário, no aspecto caótico do todo, seguindo o próprio impulso individual separatista, que representa o princípio oposto feito de revolta e de desordem. Assim, dentro do todo organicamente dirigido, funciona ele em posição anti-Lei (de independência e rebeldia), qual indisciplinado fomentador de desordem
Decorre disso que a posição do indivíduo no seio do mesmo universo é diferente conforme o nível em que vive, isto é, o do evoluído ou o do involuído. O primeiro existe em função do centro em torno ao qual gravita; o segundo se faz periférico, pretenden­do, contudo, ser o próprio centro. O primeiro é feito de harmonia, o segundo de contrastes, o primeiro é afirmativo, o segundo, contestador; o primeiro perso­nifica a aplicação da Lei, enquanto o segundo pre­tende sub-roga-la pelo seu próprio eu.
Da diversidade destas duas posições depen­de todo o resto, isto é, o método de vida, a técnica de defesa, o instrumento de que nos servimos. Na pri­meira posição o sujeito vive num campo de forças que se somam, porque convergem para a mesma di­reção; na segunda posição vive o mesmo num cam­po de forças que se elidem porque contrarias e se dispersam porque divergem em cada direção. Eis então que a arma que o involuído usa para se defen­der — sendo ele um rebelde anti-ordem — fica cir­cunscrita, e não vai além de seu âmbito pessoal. Não se colocou ele contra a Lei, negando-a? Pois bem, a Lei colocar-se-á contra ele, renegando-o. As­sim ela o repele, deixando-o só. O evoluído, pelo con­trario, aderiu à Lei. É lógico então que esta vá ao seu encontro. Assim ela o incorpora e o torna comparticipe de seus próprios recursos. Nem poderia ser de outro modo. Assim, quem segue o princípio do caos, em contraste com o próprio princípio de ordem, só poderá ser repelido e ficar isolado, abandonado a si próprio, no caos.
Eis porque é necessária a retidão, porque pode a mesma constituir uma arma de defesa para o hu­manamente indefeso que aplica o Evangelho e o princípio do perdão. Quem faz isto se insere na organicidade do todo e nela encontra a sua força e de­fesa. Só quem vive em sentido orgânico pode fruir de tais benefícios, os quais decorrem precisamente do fato de se observar uma justa regra de conduta, condição fundamental para poder pertencer àquele Organismo. Está aqui explicado porque o enqua­drar-se na ordem, pode constituir uma arma de defe­sa para sobreviver e para avançar. É esta uma arma muito mais poderosa do que as humanas, porque ela faz parte do organismo do Todo, do qual não pode dispor quem segue apenas a economia do mundo.
É necessário compreender que o homem evan­gélico, mesmo quando materialmente situado no AS, vive conforme o S, isto é, não em posição egocêntrica ou separatista, mas organicamente em função de todos os elementos do seu tipo, isto é, espiritualmente liga­do a uma coletividade de mais alto nível evolutivo, da qual ele faz parte. Nasce deste fato para o evo­luído uma condição de reciprocidade com a Lei, que, se o carrega de deveres que o involuído repele, en­che-o de direitos de que este último não goza. O ho­mem evangélico não vive isolado, mas em função do todo, e com isso ele é também um momento do todo, fato que a vida tem em conta. Assim ele goza da de­fesa que encontra quem pertence a uma coletivida­de, mesmo se, em troca, deve assumir desta os respec­tivos deveres.
Viver na organicidade do todo, tendo disso consciência, numa rede de intercâmbios sem atrito, compreender-se e fundir-se em comunhão com todos ou outros elementos para com eles colaborar, signifi­ca tornarem-se grandes e fortes como todo o organismo que assim se ajuda a construir e do qual se faz par­te. Então a nossa vida se dilata e se torna imensa porque ela é a do Todo e a do Todo é a nossa. Todas as barreiras do separatismo egocêntrico caíram, todos os canais de comunicação estão abertos e neles flui triunfante a vida. Tudo é luminoso, livre, lógico, convincente. Tal abertura é dada pelo amor que conduz à unificante colaboração. Então nenhu­ma criatura esta só, e sempre que haja necessidade, todas as outras, que com ela formam um só corpo acorrem para ajuda-la. Ninguém acorre, pelo con­trário, para ajudar o involuído anti-Lei, porque ele esta isolado e — devido ao seu egocentrismo — não existe amor, os canais estão fechados e não há cola­boração. O Evangelho defende a vida com o diver­so sistema do amor e do perdão, abatendo as barrei­ras e abrindo os canais.
Há uma forte razão para a Lei proteger o ho­mem evangélico que vive conforme a justiça. A von­tade que prevalece no funcionamento do universo e a de evoluir, e isso significa regressar a Deus, saindo do AS para entrar no S. A Lei personifica esta vonta­de e estimula para que ela se realize. Dirige-se en­tão para o involuído tratando-o com o chicote da dor e fazendo-lhe pagar seus próprios erros, para que aprenda e assim evolua. Dirige-se ao mesmo tempo para o evoluído ajudando-o a superar as dificulda­des, encorajando-o, assim, a subir mediante seus pró­prios esforços. A finalidade é sempre evoluir. No pri­meiro caso o estímulo é ao negativo, como reação e pressão, no segundo caso o estímulo se converte em convite e atração. Dessa forma, o involuído vê-se fa­talmente constrangido pela sua conduta anti-Lei, a precipitar-se na engrenagem dos ressarcimentos, san­ção da qual esta isento quem segue o sistema da re­tidão. O evoluído, pelo contrario, graças à  sua con­duta conforme a Lei, fica por esta secundado porque ele a ajuda no seu impulso fundamental que é de fa­zer evoluir.
O resultado pratico dessa técnica funcional da Lei está no fato de que, para a defesa e o bem do indivíduo, o fator retidão é importantíssimo, mesmo se em nosso mundo, lhe é atribuído um valor relativo apesar dela ser exaltada com palavras. Esta é a rea­lidade: quem se afirma mediante o sistema anti-Lei na conquista de bens materiais (poder, glória, praze­res etc.) trabalha em perda. Com efeito, enquanto julga estar tendo vantagem, faz o seu dano, enquanto julga estar ganhando se endivida perante a Lei pa­ra depois ter de responder perante a sua justiça. Al­cançar tais triunfos ao negativo porque não mereci­dos, significa ter de expiar depois, porque eles for­mam a base para destinos de sofrimento. Ao contrá­rio encontra-se em posição vantajosa — como credor perante a justiça — o indivíduo que, apesar de per­der os valores do mundo (riqueza, glória, prazeres etc.) trabalha conforme a Lei, mesmo que se por esse fato é incompreendido e desprezado.
Se o escopo fundamental do existir é evoluir, eis que tudo vale em relação a este fim supremo. Mas evoluir significa sair do separatismo do AS para voltar ao S, isto é, a Deus, mas em posição oposta à  do AS, isto é, em posição unificante. Trata-se de re­construir a unidade do Todo, pulverizado com a Queda, e de reconstruí-lo através da unificação dos ele­mentos dispersos no Caos, uma unidade após a outra, mas sempre maior. E a unificação é também or­ganização. Trata-se então de reconstruir toda a organicidade do S, por meio da construção de sistemas sempre mais complexos e mais vastos, até a perfei­ção do S. Trata-se, assim, de reconstruir — em con­traposição a todos os elementos anti-Lei feitos de de­sordem — a ordem total da Lei e isto por sucessivas etapas de reorganização, sempre mais profundas e extensas, até aquela perfeita que caracteriza a Lei.
Tudo isto já o divisamos, podendo reconhe­cer suas diversas fases de realização. Assim à fase caótica das formações galácticas vemos seguir-se a fase mais orgânica dos sistemas planetários. Na vi­da há um instinto de unificação que leva a organi­zar-se na ordem proporcionalmente ao maior grau de evolução. Alguns animais se unem em verdadeiras sociedades. O homem saiu da unidade familiar à do grupo, do castelo, da cidade, do partido político e re­ligioso, da nação, do povo, da raça, da humanida­de. Quanto mais se sabe, tanto mais estas unidades com o seu ampliar-se perdem consistência, porque são em formação: uma tentativa de construção ao longo do caminho da evolução. Mas se caminha pa­ra uma unificação sempre mais vasta, o que implica um ordenamento orgânico constitutivo de um siste­ma sempre mais complexo e completo, até ao máximo, o único, o perfeito: o S. Esta é a estrada da evo­lução, o caminho que leva a Deus. É sobre este ca­minho que nos coloca a economia do Evangelho.



Livro: Cristo: Pietro Ubaldi: tradutores Manoel Emygdio da Silva e Romano Galeffi


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