Terceira Parte
A lei circular – A missão do século XX
A lei circular – A missão do século XX
A lei circular preside a todos os movimentos do mundo; rege as evoluções
da Natureza, as da história da Humanidade. Cada ser gravita em um círculo, cada
vida descreve um circuito, toda a história humana se divide em ciclos.
Os dias, as horas, o ano e os séculos rolam na órbita do Espaço e do
Tempo, e renascem, porque seu fim, se há um fim, é precisamente o de voltar ao
princípio. Os ventos, as nuvens, as águas, as flores e a luz seguem o mesmo
destino. Os ventos voltam de novo, pelas mesmas órbitas, para as cavernas
misteriosas donde procedem.
O vapor sobe para as alturas; forma nuvens, verdadeiros oceanos suspensos
sobre nossas frontes. As nuvens que planam no espaço, mares imensos e móveis,
fundem-se em chuvas e tornam a ser os rios e os regatos que já foram. Assim, o
Ródano, o Reno, o Danúbio e o Volga já têm rolado acima de nossas cabeças antes
de correr a nossos pés. É esta a lei, a lei da Natureza e da Humanidade.
Todo ser já existiu; renasce e sobe, evolve assim em uma espiral, cujas
órbitas vão aumentando cada vez mais, e é por isso que a História vai tomando
um caráter universal: é o corso e ricorso de que fala o filósofo italiano,
Vico de Ferrara.
Uma vez colocados esses princípios, consagremos esta meditação a estudar
as idades da vida humana: a mocidade, a idade madura, a velhice, à luz dessa
grande lei, sendo a morte sua coroação e apoteose. Desses estudos surgirá o
grande princípio espiritualista da reencarnação, o único que explica o mistério
do ser e do seu destino.
É preciso renascer – é esta a lei comum do destino humano, que
também evolve em um círculo do qual Deus é o centro.
“Ninguém – dizia Jesus a Nicodemos – verá o reino de Deus –
isto é, não compreenderá a lei de seu destino – se não renascer da água e
do espírito.”
A reencarnação está claramente expressa nessas palavras, e Jesus
repreende a Nicodemos “ser mestre em Israel e desconhecer essas coisas”.
Quantos, entre nossos mestres contemporâneos, são passíveis da mesma
censura! Há muitos que se contentam com a noção superficial da vida, e nunca se
sentem tentados a olhar para o fundo! É tão fácil negar as coisas para fugir ao
dever e ao trabalho de estudar e compreender!
O positivista jamais encara o problema da origem, nem o dos fins;
contenta-se com o momento presente e o explora da melhor maneira. Muitos
homens, mesmo inteligentes, agem igual àquele. Por seu lado, o católico
limita-se a crer no que manda a igreja, que faz da vida um mistério do começo
ao fim, pondo-lhe alguns milagres no meio; e quando estas duas palavras são
pronunciadas: milagre, mistério! Todos se inclinam, todos se calam, todos
crêem. Por outra parte, os universitários só acreditaram, durante muito tempo,
nos dados da experimentação. Para eles, tudo que não figurasse em seus
programas era destituído de valor. Nunca os ídolos de Bacon tiveram tantos
adoradores. A ciência oficial, também, há meio século vem apenas contribuindo
com diminuto progresso para o pensamento moderno.
Entretanto, o médico dos nossos dias, tão ligado, até então, aos sistemas
materialistas da Escola, começa a sacudir o jugo; e é das fileiras da Medicina
atual que saem os doutores mais autorizados e mais competentes do Espiritualismo.
A próxima geração será mais feliz e ainda melhor dotada. Cresce uma
mocidade, que não surge de nenhum pedagogismo e só se instrui na grande escola
da Natureza e da consciência íntima. Esta será verdadeiramente a mocidade
livre, isto é, independente de qualquer educação fictícia, de qualquer método
empírico e convencional. Ela ouve as verdadeiras vozes; a voz interior, a voz
subliminal do ser, a voz que explica o homem ao homem e resolve o teorema do
destino com a clareza que lhe é possível.
É para essa sociedade de amanhã que escrevo estas páginas; dedico-as aos
iniciados e aos avisados, àqueles que, segundo a palavra do Mestre, têm olhos
de ver e ouvidos de ouvir.
Voltemos, pois, à lei circulatória da vida e do destino, isto é, à
doutrina da reencarnação.
Resumiremos ligeiramente a exposição científica, porque nosso fim não é
fazer trabalho dogmático, senão apenas nos entregarmos às efusões platônicas
sobre a vida, suas fases, sobre o destino e sobre a morte, que a remata
aparentemente, para lhe permitir retome o seu novo curso.
* * *
O nascimento – A união da
Alma e do corpo começa com a concepção e só fica completa na ocasião do
nascimento. É o invólucro fluídico que liga o Espírito ao gérmen; essa união se
vai apertando cada vez mais, até tornar-se completa, e isto se dá quando a
criança vê a luz do dia terrestre. No intervalo da concepção ao nascimento, as
faculdades da Alma vão, pouco a pouco, sendo aniquiladas pelo poder sempre
crescente da força vital recebida dos geradores, que diminui o movimento
vibratório do perispírito, até o momento em que o Espírito na criança fica
inteiramente inconsciente. Essa diminuição vibratória do movimento fluídico
produz a perda da lembrança das vidas anteriores, de que breve trataremos.
O Espírito na criança dormita em seu invólucro material e, à medida que
se aproxima o nascimento, suas idéias se apagam e, assim, o conhecimento do
passado, de que não tem mais consciência quando abre os olhos à luz do dia.
Essa consciência só voltará quando, pela desmaterialização final ou pelas
influências profundas da exteriorização, na hipnose, a Alma retomar seu
movimento vibratório e encontrar seu passado e o mundo adormecido de suas
recordações. Eis a verdadeira gênese da vida humana.
As aquisições do passado são latentes em cada Alma: as faculdades não se
destroem; têm raízes no inconsciente e sua aparência depende do progresso
anteriormente capitalizado, dos conhecimentos, das impressões, das imagens, do
saber e da experiência. É o que constitui o “caráter” de cada indivíduo vivo e
lhe dá as aptidões originais e proporcionais a seu grau de evolução.
A criança adquire de seus pais apenas a força vital, à qual é preciso
ajuntar certos elementos hereditários. Por ocasião da encarnação, o perispírito
se une, molécula por molécula, à matéria do gérmen. Nesse gérmen, que deve mais
tarde constituir o indivíduo, reside uma força inicial, que resulta da soma dos
elementos de vida do pai e da mãe, no momento da geração. Esse gérmen contém
uma energia potencial maior ou menor, que, transformando-se em energia ativa,
durante o período total da vida, determina o grau de longevidade do ser.
É, pois, sob a influência dessa força vital, emanada dos geradores, que,
por sua vez, a recebem dos antepassados, que o perispírito desenvolve suas
propriedades funcionais. Assim, o duplo fluídico reproduz, sob a forma de
movimentos, o traço indelével de todos os estados da Alma, desde seu primeiro
nascimento; por outra parte, o gérmen material recebe a impressão de todos os
estados sucessivos do perispírito: há aí um paralelismo vital absolutamente
lógico e harmonioso. Torna-se assim o perispírito o regulador e o apoio da
energia vital modificada pela hereditariedade. É por aí que se forma o tipo
individual de cada um. Ele é o “mediador plástico” do filósofo escocês
Wordsworth, a tessitura fluídica permanente, através da qual passa a torrente
da matéria fluente que destrói e reconstrói incessantemente o organismo vivo. É
a armadura invisível que sustém interiormente a estátua humana.
O perispírito é o princípio de identidade física e moral que mantém
indefectível, no meio das vicissitudes do ser móvel e mutável, o princípio do eu consciente. A memória, que nos dá a
certeza íntima de nossa identidade pessoal, é a irradiação reflexa desse
perispírito.
Tal é a origem de nossa vida.
Em realidade, somos unicamente filhos de nós próprios. Os fatos aí estão
para confirmar tal asserção. Os filósofos do século XVIII, com seu sistema da
alma, comparada a uma tábua rasa, sobre a qual nada ainda existe escrito,
estão, pois, enganados. Os doutores do generacionismo estariam mais perto da
verdade; exageraram, entretanto, o alcance de sua doutrina, e assim suas
conclusões.
Cada encarnação perispiritual introduz, sem dúvida, modalidades novas na
alma da criança, que reedita sua vida; mas, encontra o terreno já cultivado
para isso. Platão tinha razão quando dizia: – “Aprender é recordar-se”.
Assim se explicam os fenômenos de cultura e a fisiologia dos grandes
gênios de que fala a História: a ciência dominante de Pico de la Mirandola; a
intuição de Pascal, reconstituindo, aos treze anos de idade, os teoremas de
Euclides; Mozart, compondo, com a idade de doze anos, uma de suas obras mais
célebres.
Pode suceder, entretanto, que as leis de hereditariedade embaracem a
manifestação do gênio, porque o Espírito molda o seu corpo, mas só se pode
servir dos elementos postos à sua disposição por essa hereditariedade.
O que acabamos de dizer basta, por enquanto, para justificar
cientificamente a doutrina luminosa das vidas sucessivas.
Responderemos, em poucas palavras, à objeção dos que não cessam de
redizer que, se nossas vidas fossem múltiplas, delas conservaríamos, pelo
menos, uma vaga lembrança.
Já vimos como – e por que – se perde, na ocasião do nascimento, a memória
do passado. Esse eclipse parcial e momentâneo das existências anteriores é
absolutamente necessário para conservarmos intacta, aqui, em nosso mundo, a
liberdade. Se delas nos recordássemos com muita facilidade, haveria confusão na
ordem lógica e fatal do destino; e o Mestre disse em seu Evangelho: “Infeliz
daquele que, tendo posto a mão na charrua, olhar para trás.”.
Traçar um sulco firme e seguro exige olhar para diante e fixar unicamente
o futuro.
A obliteração do passado, entretanto, não é, nem absoluta, nem definitiva.
O perispírito, que registrou todos os conhecimentos, todas as sensações, todos
os atos, acorda; sob a influência do hipnotismo, as vozes profundas do passado
se fazem ouvir Assemelhamo-nos às árvores milenárias das florestas. Seus
lustros e decênios estão inscritos nos círculos concêntricos da casca secular;
assim, cada idade de nossas existências sucessivas deixa uma zona inalterável
sobre o perispírito, que retraça fielmente os matizes mais imperceptíveis do
passado e os atos mais aparentemente apagados da vida mental e de nossa
consciência.
Mas é notadamente à hora da morte que o perispírito, prestes a
desprender-se, sente despertar na memória as visões adormecidas das existências
transatas. Atesta-o a experiência de cada dia.
Por um médico amigo, ouvimos dizer que, em sua mocidade, estando a ponto
de afogar-se, momento em que começava a asfixia, todos os quadros de sua vida
se desenrolaram no pensamento em sucessão
retrógrada, com pormenores, e acompanhados de sensação de bem ou de mal, em
cada um dos atos de sua vida inteira.
Era o julgamento espiritual que começava. Esse julgamento sabe-se, não é
mais que o balanço instantâneo da consciência, que faz pronunciemos, nós
mesmos, o veredicto que nos fixa a sorte no novo mundo onde vamos ingressar.
Agora que conhecemos a lei da existência e a doutrina científica da
encarnação, ser-nos-á mais fácil compreender as vicissitudes da viagem
terrestre, as idades pelas quais passamos e o papel que cada degrau da vida
humana vem ter na economia harmoniosa do seu conjunto. Aparecer-nos-ão, assim,
a adolescência, a idade madura e a velhice sob o verdadeiro aspecto; debaixo
dessa luz elevada do Espiritualismo, saberemos melhor apreciar e compreender.
Morrer para reviver, reviver para morrer e para viver ainda, tal é a lei única
e universal.
O nascimento e a morte são os pórticos luminosos ou obscuros, sob os
quais é preciso passemos, para entrar no templo do destino.
Fato estranho! Essa ciência profunda da origem das coisas, essa gênese do
ser, essa lei do destino, a Antigüidade as conhecia e as compreendia
infinitamente melhor que nós outros. O que mal começamos a restabelecer e
provar cientificamente, já o sabia, por intuição e iniciação, a Grécia, o
Egito, o Oriente. Formava o fundo dos mistérios Isicos e de Elêusis, espécie de
representação dramática da reencarnação das Almas, da sua entrada no Hades,
depuração e transmigração sucessivas.
Essas festas duravam três dias e traduziam, em uma trilogia comovente,
todo o mistério deste mundo e do Além.
No fim das iniciações solenes, os sábios eram sagrados por toda a vida, e
os povos, a quem só se deixava ver a parte simbólica e hieroglífica de tais
verdades esotéricas, pressentiam-nas, sob o revestimento do símbolo, e
guardavam assim o verdadeiro sentido da vida. Hoje, esse sentido, nós o
perdemos. O Cristianismo primitivo, o de Jesus e o dos Apóstolos, possuía-o
ainda.
A partir do dia em que o espírito grego, em sua sutileza, criou a Teologia, o senso esotérico desapareceu
e a virtude secreta dos ritos hieráticos evaporou-se, qual se fosse a virtude
de um sal insípido. A escolástica sufocou a primeira revelação sob suas
montanhas de silogismos e argumentos especiosos e sofísticos.
A mitologia pagã possuía, no mais elevado grau, a inteligência das
origens e a noção da gênese vital. Sob a forma de mitos poéticos, transpirava a
verdade inicial, tal qual sob a casca da árvore se revela a seiva da vida.
* * *
É à luz do Espiritualismo que desejo estudar as diversas fases da vida
humana, ligando-as e comparando-as às estações alternadas que se sucedem no
tempo.
Igual a Maurice de Guérin, o iluminado e iniciado que morreu jovem, tal
como ocorre a todos “os amados dos deuses”, queríamos poder também “penetrar os
elementos interiores das coisas, remontar o raio das estrelas e a corrente dos
rios e da vida, até ao imo dos mistérios de sua geração; ser admitidos, enfim,
pela grande – Natureza, no mais retirado de suas divinas moradas, isto é,
ao ponto de partida da vida universal. Lá nos surpreenderia, certamente, a
causa primeira do movimento, e ouviríamos o primeiro cântico dos seres, em sua
matinal frescura”.
Esses dons intuitivos são, em certos homens, uma das formas mais elevadas
da mediunidade. A mediunidade, pode-se dizer, é una em seu princípio e multiforme em suas manifestações: é a
verdadeira iniciação íntima, o misterioso idioma com que o mundo superior se
comunica com a Alma, com o pensamento daqueles que escolheu para
correspondentes na Terra.
Meditemos, pois, a essa luz e nessas disposições, sobre o mistério da
vida humana e as harmonias secretas que presidem às suas fases sucessivas e às
diferentes idades, verdadeiras estações da Alma, que dão, cada uma por sua vez,
suas flores e seus frutos.
Os poetas têm cantado a mocidade
com a opulência de seus dons, o brilho de suas cores, os surtos de sua força, o
encanto de sua graça e de sua beleza...
“A mocidade é semelhante às florestas – diz ainda Maurice de Guérin,
em seu imortal Centauro –, às
florestas verdejantes, atormentadas pelos ventos; ela mostra, por todos os
lados, as ricas dádivas da vida; profundo murmúrio penetra sempre em sua
folhagem.”
A imagem é bela, e bela principalmente pela sua justeza e verdade.
O que caracteriza a mocidade é a opulência, a plenitude da vida, a
superabundância das coisas, o impulso para o futuro. A dedicação, a necessidade
de amar, de nos comunicarmos, caracteriza esse período da vida em que a Alma,
novamente ligada a um corpo cujos elementos são novos e fortes, se sente capaz
de empreender vasta carreira e se promete a si mesma grandes esperanças.
A mocidade tem capital importância, porque é a primeira orientação para o
destino; nela o esquecimento do passado é completo; este não existe mais, e
todas as suas potências estão voltadas para o futuro. Eis por que os moralistas
e os educadores concentraram sua experiência e seus esforços nesse prefácio da
vida humana, do qual dependerá todo o livro. “A esperança da seara está na
semente”, dizia Leibniz; a promessa dos frutos está igualmente contida no
sorriso das flores.
O Cristianismo monacal e medieval falseou completamente a noção da vida e
da educação. Preconizando a fealdade física e o desprezo do corpo, não
compreendeu que a Alma talha seu corpo, tal qual Deus forma a Alma, e que o
corpo deve trazer a assinatura de ambos, firma que deve ser a assinatura da
Beleza.
Enquanto o nosso século ou o que se seguir não tiver corrigido esse erro,
nada terão feito para o verdadeiro progresso do mundo. Embelezem os corpos, se
quiserem semear as Almas e aplainar o caminho do destino. Não esqueçais, ó
futuros educadores de povos, que a fealdade é um elemento mórbido.
Torna-se, pois, necessário, refazer completamente a educação da mocidade,
se desejarmos acelerar as vitórias e o progresso do século por vir. É preciso
que tudo em torno dessa juventude: homens e coisas, artes, ciências,
literatura, tudo lhe fale de grandiosidade, nobreza, força, glória e beleza.
Quando a mocidade antiga ia concorrer anualmente às festas gloriosas da
Olimpíada, desde que punha o pé na cidade célebre, era empolgada pela magia
fascinadora da Beleza.
Os edifícios, com sua impecável simetria; o Fórum, com suas soberbas
estátuas, representando ora a formosura de Hércules, ora a de Apolo; o concurso
religioso do povo; a majestade dos templos; a harmoniosa organização da festa;
as coroas de mirto e louro, que faziam já recender o orgulho da vitória; tudo
falava aos efebos vindos das extremidades da Ática para lutar no stadium: “Ó
jovens, sede felizes, sede grandes, sede belos, sede fortes!” Um pouco mais além,
no santuário de Olímpia, Zeus de Fídias, radiante de imortal beleza,
consagrava, com seu gesto divino, essa lição solene e harmoniosa das coisas.
É preciso ressuscitar essa disciplina da Antigüidade sagrada, se
quisermos refazer a juventude e a força da Humanidade.
Tudo repousa hoje na ciência oficial – para método, na
democracia – para princípio social. Eis precisamente que ambas estão
ameaçadas. A ciência materialista esvai-se na dissecação e na análise; decompõe
em lugar de criar, disseca em lugar de agir.
Por outra parte, a democracia, em suas obras vivas, traz já os germens da
decadência. Preconiza a mediocridade em todos os gêneros; proscreve o gênio e
desconfia da força; o século XX começou com esse balanço intelectual e moral,
impotente e doloroso. O erro foi tomar a ciência por ideal e a democracia por
fim, enquanto que ambas são meios, apenas.
A mocidade de amanhã deverá reagir vigorosamente contra essas duas
idolatrias; – a de hoje já começa a fazê-lo. Há, entre os nossos jovens,
alguns Espíritos de elite, iniciados, esclarecidos da primeira hora, que
desbravam o caminho e preparam o êxodo e a marcha do Espírito para o futuro.
São os espiritualistas de bom quilate, os que sabem que lá, onde sopra o
Espírito, é que está a verdadeira bondade.
Será a divisa da legião nova, isto é, da mocidade livre, liberta das
peias de falsas disciplinas, da mocidade que se interroga e se ausculta a si
própria, que ouve as vozes íntimas e procura compreender seu destino, estudando
o mistério e a lei da evolução.
Será o “reino do Espírito” a que as Almas amantes da Altura aspiram.
Certamente, o fim ainda está longe de ser atingido; é preciso pulverizar muitos
ídolos, cujo pedestal é rebelde ao martelo do demolidor; entretanto, tudo nos
orienta para esse termo, entrevisto pelos pensadores, para além dos horizontes
de nossa idade: uma força para aí nos conduz, qual impele um batel o vento do
mar largo; e esperamos, antes de morrer, poder saudar de longe a terra
prometida, que o sol futuro iluminará com sua glória matinal e suas fecundas
claridades.
* * *
A Idade madura é, em realidade,
a idade de ouro da vida, porque é a época da colheita, o messidor, em que a maturação se opera no coração, no espírito, em
todo o ser. As exuberâncias da mocidade são aclaradas, à semelhança das aléias,
das abertas que o lenhador traçou na opulência da floresta. As ilusões e os
sonhos brilhantes se desvanecem, sob a bruma dourada que outrora recobria as
coisas; vêem-se aparecer as linhas graves, as formas austeras da realidade.
Os que nos rodeiam não têm mais na fronte a auréola poética que nossa
imaginação criadora lhes havia colocado; o próprio amor nos revelou alguns de
seus desfalecimentos, talvez mesmo traições; enfim, demonstrou-nos que a
própria virtude não é, por vezes, mais que uma palavra. Nesse período da vida,
uma grande desgraça ameaça a maior parte dos homens: o cepticismo.
Infeliz daquele que se deixa invadir por essa larva malsã, que neutraliza
todas as forças da maturidade! É, então, bem ao contrário, que o homem deve
redobrar o ânimo, revelar em si o santo entusiasmo da mocidade. Felizes
daqueles cujo coração guardou a fé dos primeiros dias!
Sem dúvida, a idade madura é menos prática, menos primaveril que a
adolescência; as flores decaíram do seu colorido e perfume; mas os frutos,
igualando-se aos dos ramos de uma árvore, começam a aparecer na extremidade da
Alma.
Na mocidade, sente-se o homem engrandecer; sente-se amadurecer no meio da
vida, e é esta uma das mais nobres e mais produtivas paragens da evolução
humana. A idade madura é, por excelência, o período da plenitude; é o rio que
corre com toda a força e espalha pelas campinas a riqueza e a fecundidade.
Nas Almas evoluídas, ricas do capital acumulado nas vidas anteriores, as
grandes obras são escritas ou esboçadas na mocidade; o gênio é adolescente,
podemo-nos exprimir assim.
A maior parte dos grandes homens da História sentiu desde sua primeira
mocidade subir ao horizonte do pensamento a estrela que um dia lhes iluminaria
a glória e a imortalidade.
Cristóvão Colombo era ainda criança, e já o visitavam as visões do Novo
Mundo; Rafael era imortal antes de ter atingido a segunda mocidade. Milton
contava 12 anos de idade, quando germinou em seu pensamento a primeira idéia do
Paraíso Perdido. Mas, para a maioria
dos homens – porque o gênio é a exceção – o talento, só, é a regra
ordinária. É na maturidade da vida, no meio da floresta, como se exprimia
Dante, que se realizam, tanto os grandes pensamentos, quanto as grandes obras.
A arte da vida consiste em preparar a idade madura, qual o trabalhador prepara,
apressadamente, a colheita.
Dever-se-ia fazer durar muito tempo, bastante tempo esse período medieval
de nossa existência, em que a vida perispiritual esplende em sua pujança,
possui todo o poder radiante e vibratório; por isso, torna-se necessário
conservar o mais tempo possível um alimento essencial de ação e de trabalho:
sangue puro, sistema nervoso disciplinado, corpo vigoroso e são – essa mens sana in corpore sano de que fala o
sábio e que é o equilíbrio perfeito da vida física, intelectual e moral.
Compreende-se, então, quanto à harmonia e a ordem do ser humano são coisas
difíceis de organizar e conquistar.
Quantas mocidades brilhantes e cheias de promessa caem em Abril, a
exemplo do que ocorre com as flores!
O grande inimigo da idade madura, e assim o da vida inteira, é o egoísmo.
O homem se diminui e se mata pela necessidade de gozar. As paixões carnais e
cerebrais calcinam o homem pelas duas extremidades, se assim se pode dizer:
esvaziam o cérebro e o coração. O sangue não rejuvenesce com presteza
necessária a retardar a velhice; e é assim que, antes do prazo real, a morte
chega. É preciso dar para reaver, e o sacrifício se torna elemento conservador,
pois, diz o Mestre: “aquele que tem muito cuidado em guardar a vida, por essa
mesma razão a compromete e perde”. “Não há ninguém que viva tanto na Terra,
quanto aquele que está sempre prestes a morrer.” “Eles te chamam, tu
foges – diz o poeta à morte – eu quero viver, tu vens.”
A idade madura é o verão de nossa existência terrena; a exemplo da
estação estival, é feita de ardores, cheia de luz; o nascer do sol é logo
manhã; o poente é radioso e as noites alumiadas suntuosamente pelas estrelas.
Sente-se aí a criatura feliz com o viver; tem a consciência de sua força, e
dela sabe servir-se. É quando atinge física e moralmente o ponto culminante da
Beleza. Porque há uma beleza na idade madura, e esta é a verdadeira. Um de
nossos erros está em crer que a beleza da mocidade é a única senhora da vida;
falta-lhe, entretanto, o elemento principal: a força, resultante do equilíbrio
geral e harmonioso do ser.
A idade mediana é a idade da vitória; a adolescência revela a rosa e o
mirto; à maturidade da vida se reservam os lauréis. O trabalho, a inspiração e
o amor reúnem-se para lhe tecer as coroas: é a hora solene em que os troféus
vêm colocar-se a seus pés. Todas as divindades favoráveis lhe sorriem, todos a
favorecem. A Fortuna viril e o gênio tutelar da Pátria convidam-na a sacrificar
em seus altares.
* * *
A velhice é o outono da vida;
no último declínio, a vida está no inverno. Somente com o pronunciar esta
palavra – velhice –, sente-se já o frio que sobe ao coração; a velhice,
segundo o modo de ver comum dos homens, é a decrepitude, a ruína; ela
recapitula todas as tristezas, todos os males, todas as dores da vida; é o
prelúdio melancólico e aflitivo do último adeus. Há aí um grave erro. Em regra
geral nenhuma fase da vida humana é inteiramente deserdada dos dons da
Natureza, e muito menos das bênçãos de Deus. Por que o derradeiro quartel da
existência, o que precede imediatamente a coroação do destino, será mais triste
que os outros? Seria uma contradição – e esta não pode existir na obra
divina – onde tudo é harmonia comparável à da composição viva de um
concerto impecável.
Ao contrário, a velhice é bela, é grande, é santa. Vamos estudá-la um
instante, à luz pura e serena do Espiritualismo.
Cícero escreveu um eloqüente tratado sobre a velhice. Sem dúvida,
tornamos a encontrar nessas célebres páginas alguma coisa do gênio harmonioso
desse grande homem; é, no entanto, uma obra puramente filosófica, e que só
contém vistos frios, uma resignação estéril e abstrações puras.
Precisamos colocar-nos em outro ponto de vista, para compreender e
admirar a peroração augusta da existência terrestre.
A velhice recapitula todo o livro da vida; resume os dons das outras
épocas da existência, sem as ilusões, nem as paixões, nem os erros.
O ancião viu o nada de tudo quanto deixa; entreviu a certeza de tudo o
que há de vir; é um vidente. Sabe, crê, vê, espera. Em torno da fronte, coroada
de cabeleira branca qual a faixa hierática dos antigos pontífices, paira
majestade sacerdotal. À falta de reis, entre certos povos, eram os velhos que
governavam.
A velhice é ainda, e apesar de tudo, uma das belezas da vida, e certamente
uma de suas mais altas harmonias.
Diz-se muitas vezes: que belo velho! Se a velhice não tivesse estética
especial, por que tal exclamação? Entretanto, é preciso não esquecer de que, em
nossa época, “há – já o dizia Chateaubriand – muitos velhos, o que
não é a mesma coisa, e – poucos anciães!” O ancião, com efeito, é bom,
indulgente, estima e encoraja a mocidade; seu coração não envelheceu. Os
velhos, porém, são ciumentos, malévolos e severos; e, se nossas gerações novas
perdem o culto de outrora pelos antepassados, não é, precisamente, porque os
velhos deixaram de ter a alta serenidade, a benevolência amável que fazia,
primitivamente, a poesia dos antigos lares?
A velhice é santa, pura quanto à primeira infância; por isso, aproxima-se
de Deus e vê mais claro e mais longe nas profundezas do Infinito.
Ela é, em realidade, um começo de desmaterialização. A insônia,
característico ordinário dessa idade, disso oferece a prova material. A velhice
assemelha-se à vigília prolongada, à vigília da eternidade, e o velho é uma
espécie de sentinela avançada, na extrema fronteira da vida; já tem um pé na
terra prometida e vê a outra margem, a segunda vertente do destino. Daí essas
ausências estranhas, essas distrações prolongadas que costumamos tomar por
enfraquecimento mental e que são, em realidade, explorações momentâneas no
Além, isto é, fenômenos de expatriação passageira. Eis o que nem sempre se
compreende.
A velhice, tem-se dito muitas vezes, é a tarde da vida, é a noite. A
tarde da vida, em verdade; mas, há tardes belas e poentes com reflexos de
apoteose. É a noite; mas, a noite é tão bela, com o seu ornato de constelações!
Igual à noite, a velhice tem suas vias-lácteas, suas estradas brancas e
luminosas, reflexo esplêndido de longa vida, cheia de virtude, de bondade, de
honra! A velhice é visitada pelos Espíritos do Invisível, tem iluminações
instintivas; um dom maravilhoso de adivinhação e profecia; é a mediunidade
permanente, e seus oráculos são os ecos da voz de Deus.
Eis por que são duplamente santas as bênçãos do ancião.
Devem-se guardar no coração os últimos transportes do ancião que morre
qual o eco longínquo de uma voz amada de Deus e respeitada pelos homens.
A velhice, quando é digna e pura, assemelha-se ao nono livro da Sibila
que, por si só, vale o preço de todos os outros, porque os recapitula e,
resumindo todo o destino humano, anula os outros livros.
Prossigamos nossa meditação sobre a velhice e estudemos o trabalho
interior que nela se estabelece.
“De todas as histórias – diz-se – a mais bela é a das Almas.”
Isso é verdade. É belo penetrar nesse mundo interior, e surpreender as leis do
pensamento, os movimentos secretos do amor.
A Alma do ancião é uma cripta misteriosa, esclarecida pela alba inicial
do sol do outro mundo. De igual forma que as antigas iniciações se davam nas
salas profundas das pirâmides, longe do olhar e do ruído dos mortais, abstratos
e inconscientes, paralelamente, na cripta subterrânea da velhice dão-se as
iniciações sagradas, que preludiam as revelações da morte.
As transformações, ou melhor, as transfigurações operadas nas faculdades
da Alma, pela velhice, são admiráveis. Esse trabalho interior resume-se em uma
única palavra: a simplicidade.
A velhice é eminentemente simplificadora de tudo. Simplifica, a princípio,
o lado material da vida; suprime todas as necessidades irreais, as mil
necessidades artificiosas que a mocidade e a idade madura nos tenham criado e
que faziam, de nossa existência complicada, verdadeira escravidão, servidão,
tirania. Já o dissemos acima: – é um começo de espiritualização.
Dá-se o mesmo trabalho de simplificação na inteligência. As coisas
adquiridas tornam-se mais transparentes; no fundo de cada palavra encontra-se a
idéia, entrevê-se Deus.
O ancião tem uma faculdade preciosa: a de esquecer. Tudo que lhe foi
fútil, supérfluo na vida, apaga-se; só conserva na memória, qual o fundo de um
cadinho, o que foi substancial.
A fronte do velho não tem mais a atitude altiva e provocadora da
mocidade, a da idade viril; ela pende, sob o peso do pensamento, lembrando um
fruto maduro.
O ancião curva a testa e inclina-se sobre o coração. Procura converter em
amor tudo quanto lhe resta de faculdades, de vigor, de lembranças. A velhice
não é uma decadência: é realmente um progresso. Caminhada avante para o termo;
e esse título é uma das bênçãos do Céu.
A velhice é o prefácio da morte; é o que a torna santa, igual à vigília
solene que faziam os iniciados antigos, antes de levantar o véu que cobria os
mistérios. A morte é, pois, uma iniciação.
Todas as religiões e todas as filosofias têm tentado explicar a morte;
bem poucas lhe têm conservado o verdadeiro caráter.
O Cristianismo divinizou-a; seus santos encararam-na nobremente, seus
poetas cantaram-na por uma libertação. Entretanto, os santos do Catolicismo só
viram nela as exonerações da servidão da carne, o resgate do pecado, e, por
isso mesmo, os ritos funerários da liturgia católica espalham uma espécie de
terror sobre essa peroração, aliás, tão natural, da existência terrestre.
A morte é simplesmente um segundo nascimento; deixamos o mundo pela mesma
razão por que nele entramos, segundo a ordem da mesma lei.
Algum tempo antes da morte, um trabalho silencioso se executa. A
desmaterialização já está começada. Poderiam verificá-la por certos sinais,
quantos rodeiam o moribundo, se não estivessem distraídos pelos fatos externos.
A moléstia goza aqui de papel considerável. Ela acaba em alguns meses, em
algumas semanas, em alguns dias, apenas, o que o lento trabalho da idade havia
preparado: é a obra de “dissolução” de que fala o Apóstolo Paulo. Essa palavra
dissolução é muito significativa: indica nitidamente que o organismo se
desagrega e que o perispírito se “desliga” do resto da carne em que estava
envolvido.
Que se passou nesse momento supremo, a que todas as línguas chamam
“agonia”, isto é, o último combate? Pressente-se, adivinha-se.
Um grande poeta moribundo traduziu tal instante solene neste verso:
“É este o combate do dia e da
noite.”
Com efeito, a Alma entra em um estado crepuscular, está no limite extremo,
na fronteira dos dois mundos, e é visitada pelas visões iniciais daquele em que
vai entrar. O mundo que deixa envia-lhe os fantasmas da lembrança e todo um
cortejo de Espíritos lhe aparece do lado da aurora.
Ninguém morre só, pela mesma forma que ninguém nasce só. Os invisíveis
que o conheceram, que o amaram, que o assistiram aqui, em nosso orbe, vêm
ajudar o moribundo a desembaraçar-se das últimas cadeias do cativeiro
terrestre.
Nessa hora solene, as faculdades aumentam; a Alma, já meio desprendida, dilata-se;
começa a entrar em sua atmosfera natural, a retomar à vida vibratória normal, e
é por isso que, nesse momento, se revelam, em alguns agonizantes, fenômenos
curiosos de mediunidade.
A Bíblia está cheia dessas revelações supremas. A morte do patriarca Jacó
é o tipo perfeito da desmaterialização e de suas leis. Os doze filhos estão
reunidos em torno do leito, formando uma viva coroa funerária. O ancião
recolhe-se e, depois de reconstituir o passado, as lembranças, profetiza a cada
um deles o futuro da família e de sua raça.
A vista se lhe estende mais longe ainda: percebe na extremidade dos
tempos aquele que deve um dia recapitular toda a mediunidade secular do velho
Israel: o Messias, e mostra, por último rebento de sua raça, aquele que
resumirá toda a glória da posteridade de Jacó.
Nenhum Faraó, em seu orgulho, morreu com tanta grandeza quanto esse velho
obscuro e ignorado, que expirava a um canto da terra de Gessen.
Voltemos ao ato da morte. A desmaterialização está completa; o
perispírito se desprende do invólucro carnal, que vive ainda algumas horas,
talvez, de uma vida puramente vegetativa. Assim, os estados sucessivos da
personalidade humana desenrolam-se em ordem inversa àquela que preside ao
nascimento. A vida vegetativa, com que o ser havia começado no seio maternal, é
agora a última a extinguir-se; a vida intelectual e a vida sensitiva são as
duas primeiras que partem.
Que se passa então? O Espírito, isto é, a Alma e seu envoltório fluídico
e, por conseqüência, o eu leva a
última impressão moral e física que teve na Terra, e a conserva durante um
tempo mais ou menos prolongado, conforme o grau respectivo de sua evolução. Eis
por que convém rodear a agonia dos moribundos de palavras doces e santas, de
pensamentos elevados, porque são esses últimos gestos, essas últimas imagens
que se imprimem nas folhas do livro subliminal da consciência; é a linha última
que o morto lerá desde sua entrada no Além, ou antes, desde quando tiver
consciência de seu novo modo de ser.
A morte é, pois, em realidade, uma passagem, uma transição e uma
translação. Se devermos tomar à vida moderna uma imagem, comparemo-la a um
túnel. Com efeito, a Alma avança no desfiladeiro da morte, mais ou menos
lentamente, segundo seu grau de desmaterialização e espiritualidade.
As Almas superiores, que sempre viveram nas altas esferas do pensamento e
da virtude, atravessam essa obscuridade com a rapidez do trem expresso que
desemboca, em um instante, na plena luz do vale, mas é esse um privilégio de
pequeno número de Espíritos evoluídos; são os eleitos e os sábios.
Não falaremos aqui dos criminosos, dos seres animalizados, de instintos
grosseiros, que viveram, ou antes, vegetaram toda uma existência nos pântanos
do vício e na enxurrada do crime. Para estes é a noite, a noite cheia de
terríveis pesadelos. Temos dificuldade, entretanto, em crer que as fronteiras
do Além e os caminhos da vida errática estejam povoados desses seres terríveis
a que os ocultistas chamam elementais.
Só se poderiam ver aí símbolos e imagens, reflexos, de paixões, vícios, crimes
que os perversos cometeram na Terra.
Encaremos aqui, apenas, as vidas ordinárias, as existências que seguem
tranqüilamente as fases lógicas do seu destino. É a condição comum da maior
parte dos mortais.
A Alma entrou na sombria galeria: aí fica em obscuridade, ou antes, em
uma penumbra próxima da luz. É o crepúsculo do Além. Os poetas, com muita
felicidade, têm pintado esse estado e descrito esse meio-dia, esse claro-escuro
do mundo extraterrestre.
Aqui, as analogias entre a vida e a morte são impressionantes. A criança
permanece muitos dias sem fixar a luz e sem ter conhecimento do que a rodeia;
seus olhos ainda não se abriram, e assim a irradiação do pensamento.
O recém-nascido no mundo invisível fica, também ele, algum tempo sem
tomar conhecimento do seu modo de ser e de seu destino. Ele ouve, ao mesmo
tempo, os murmúrios próximos ou remotos dos dois mundos; entrevê movimentos e
gestos, que não poderia precisar, nem definir. Meio entrado na quarta dimensão,
perde a noção precisa da terceira, na qual havia até então evolvido. Não dá
mais tento, nem da quantidade, nem do número, nem do espaço, nem do tempo, pois
que seus sentidos que, quais outros tantos instrumentos de óptica, o ajudavam a
calcular, a medir, a pesar, se fecharam de repente, qual uma porta para sempre
condenada. Que estado estranho, esse da Alma, que tateia cega, nas estradas do
Além! E, no entanto, esse estado é real.
Nesse momento, as influências magnéticas da prece, das lembranças, do
amor, podem gozar um papel considerável e apressar o advento das claridades
reveladoras que vão iluminar essa consciência ainda adormecida, essa Alma “em
trabalhos” do seu destino. A prece, nesse caso, é uma verdadeira evocação; é o
grito de apelo à Alma indecisa e flutuante. Eis porque o esquecimento dos
mortos e a negligencia de seus cultos são reprováveis e nos acarretam mais
tarde olvidos semelhantes.
Esse período de transição, entretanto, e essa parada no túnel da morte
são absolutamente necessários, em preparo da visão de luz que deve suceder à
obscuridade. É preciso que o sentido psíquico se vá adaptando proporcionalmente
ao novo foco que o vai esclarecer.
Uma passagem súbita, sem transição nenhuma desta vida à outra, seria um
deslumbramento que produziria perturbação prolongada. Natura non facit saltus, disse o grande Lineu; essa lei rege
igualmente os graus progressivos do desprendimento espiritual.
É preciso que a visão da Alma se engrandeça, que a ave noturna,
impossibilitada de encarar a aurora, fortaleça as pupilas e possa, assim como a
águia, olhar de face o Sol, com olhar intrépido. Esse trabalho de preparação
executa-se progressivamente, durante a demora, mais ou menos prolongada, no
túnel que precede a vida errática propriamente dita. Pouco a pouco, vai a luz
sendo feita; a princípio muito pálida, alba inicial que se ergue sobre a crista
dos montes; depois, à alba sucede a aurora; aqui, a Alma entrevê o mundo novo
em que habita; ela pode ler em si mesma, e se compreende, graças a uma luz
sutil que a penetra em toda a sua essência. Gradualmente, todo o seu destino,
com as vidas anteriores, e, antes de tudo, com a noção consciente e reflexa da
última, vai revelando-se, qual em um clichê cinematográfico vibratório e
animado. O Espírito, então, compreende o que é, onde está e o que vale.
As Almas, por instinto infalível, vão para a esfera proporcionada a seu
grau de evolução, à sua faculdade de iluminação, à sua aptidão atual de
perfectibilidade.
As afinidades fluídicas conduzem-na, qual doce mas imperiosa brisa que
impele um batel, para outras Almas similares, com as quais vai unir-se em uma
espécie de amizade, de parentesco magnético; e assim, a vida, uma vida
verdadeiramente social, mas de grau superior, reconstitui-se, tal qual outrora
na Terra, porque a Alma humana não poderia renunciar à sua natureza. A
estrutura íntima, sua faculdade de irradiação, lhe impõe a sociedade que
merece.
No Além, as famílias, os grupos de Almas e os círculos de Espíritos
reformam-se segundo as leis de afinidade e simpatia.
O purgatório é visitado pelos anjos, dizem os místicos teólogos. O mundo
errático é visitado, dirigido, harmonizado pelos Espíritos superiores, dizemos
nós. Aqui, em nosso orbe terráqueo, entre os eleitos pelo gênio, pela santidade
e pela glória, houve e haverá sempre iniciadores. São predestinados,
missionários que receberam por encargo fazer progredir o mundo na Verdade e na
Justiça, com o preço de seus esforços, de suas lágrimas e, algumas vezes, de
seu sangue.
As altas missões da Alma jamais cessam. Os Espíritos sublimes, que têm
instituído e melhorado seus semelhantes na Terra, continuam em mundo superior,
em quadro mais vasto, seu apostolado de luz e sua redenção de amor.
Conforme dissemos no início destas páginas, é assim que a História
eternamente recomeça e se torna cada vez mais universal. A lei circulatória que
preside ao eterno progresso dos Estados e dos mundos desenrola-se sem cessar em
esferas e mundos cada vez mais engrandecidos; tudo recomeça no Alto, em virtude
da mesma lei que faz tudo evolver no plano inferior. Todo o segredo do Universo
aí está.
As Almas, a quem a consciência acusa de haver falhado na última
existência, compreenderam a necessidade de reencarnar, e preparam-se para isso.
Tudo se agita, tudo se move nessas esferas, sempre em vibração, sempre em
movimento. É a atividade incessante, ininterrupta, progressiva, eterna. O
trabalho dos povos na Terra nada é, em comparação com esse labor harmonioso do
Universo. Lá em cima, nenhum empecilho material, nenhum obstáculo carnal faz
parar os surtos, nem entibia ou enfraquece o vôo. Nenhuma hesitação, nenhuma
ansiedade, nenhuma incerteza. A Alma vê o fim, sabe os meios, precipita-se no
sentido em que se deve dirigir.
Quem nos poderá descrever a harmonia dessas inteligências puras, o
esforço dessas vontades firmes, o impulso desses amores mais fortes que a
morte?
Que linguagem poderá descrever a comunhão sublime e fraternal desses
Espíritos que mantém entre si diálogos ardentes quanto o é a luz, sutis quanto
o são os perfumes, onde cada vibração magnética tem eco no próprio imo de Deus?
Tal é a vida celeste; tal é a vida eterna; são essas perspectivas que a morte
abre definitivamente diante do Espírito! Ó homem! Compreende, pois, teu
destino, sê altivo e feliz de viver; não blasfemes da lei de amor e beleza que
abre diante de ti caminhos tão amplos e radiosos! Aceita a vida tal qual é, com
as suas fases, alternativas, vicissitudes; ela é o prefácio, o prelúdio de uma
outra vida mais elevada, onde planarás qual águia na imensidade, depois de
haveres penosamente rastejado em um mundo material e imperfeito.
Não é, pois, com um hino fúnebre que devemos acolher a morte, e sim com
um cântico de vida, porque não é o astro da tarde que se ergue cruel, mas a
estrela radiosa da verdadeira manhã.
Canta ó alma, o hino triunfal, o hosana do novo século, no qual tudo irá
nascer para destinos mais gloriosos. Sobe sempre mais alto na pirâmide infinita
da luz; e, semelhante ao herói da legenda do Excelsior, vai fixar tua tenda nos Tabores radiosos do
Incomensurável, do Eterno!
Léon Denis: Livro: O Grande Enigma FEB
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