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Origem dos Evangelhos...
Na ótica Espírita...
Há cerca de um século,
consideráveis trabalhos empreendidos nos diversos países cristãos, por homens
de elevada posição nas igrejas e nas universidades, permitiram reconstituir as
verdadeiras origens e as fases sucessivas da tradição evangélica.
Foi, sobretudo, nos
centros de religião protestante que se elaboraram esses trabalhos,
notabilíssimos por sua erudição e seu caráter minucioso, e que tão vivas
claridades projetaram sobre os primeiros tempos do Cristianismo, sobre o fundo,
a forma, o alcance social das doutrinas do Evangelho.
São os resultados desses
trabalhos o que exporemos resumidamente aqui, sob uma forma que esforçaremos
por tornar mais simples que a dos exegetas protestantes.
O Cristo nada escreveu.
Suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos, foram transmitidas de boca
em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes épocas, muito tempo depois
da sua morte. Uma tradição religiosa popular formou-se pouco a pouco, tradição
que sofreu constante evolução até o século IV.
Durante esse período de
trezentos anos, a tradição cristã jamais permaneceu estacionária, nem a si
mesma semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida, através dos tempos e
lugares, ela se enriqueceu e diversificou. Efetuou-se poderoso trabalho de imaginação;
e, acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas evangélicas,
segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possível determinar com segurança
a ordem em que essa tradição se desenvolveu e fixar a data e o valor dos
documentos que a representam.
Durante perto de meio
século depois da morte de Jesus, a tradição cristã, oral e viva, é qual água
corrente em que qualquer se pode saciar. Sua propaganda se fez por meio da prédica,
pelo ensino dos apóstolos, homens simples, iletrados[i],
mas iluminados pelo pensamento do Mestre.
Não é senão do ano 60 ao
80 que aparecem as primeiras narrações escritas, a de Marcos a princípio, que é
a mais antiga, depois as primeiras narrativas atribuídas a Mateus e Lucas,
todas, escritos fragmentários e que se vão acrescentar de sucessivas adições,
como todas as obras populares[ii].
Foi somente no fim do
século I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas, assim como o de Mateus,
o primitivo, atualmente perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em Éfeso, o
evangelho de João.
Ao lado desses
evangelhos, únicos depois reconhecidos pela Igreja, grande número de outros
vinha à luz. Desses, são conhecidos atualmente uns vinte; mas, no século III,
Orígenes os citava em maior número. Lucas faz alusão a isso no primeiro
versículo da obra que traz o seu nome.
Por que razão foram
esses numerosos documentos declarados apócrifos e rejeitados? Muito
provavelmente porque se haviam constituído num embaraço aos que, nos séculos II
e III, imprimiram ao Cristianismo uma direção que o devia afastar, cada vez
mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil sistemas
religiosos, qualificados de heresias, devia ter como resultado a criação de
três grandes religiões, nas quais o pensamento do Cristo jaz oculto, sepultado
sob os dogmas e práticas devocionistas como em um túmulo[iii].
Os primeiros apóstolos
limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana.
Demonstravam a necessidade da penitência, isto é, da reparação das nossas
faltas. Essa purificação era simbolizada no batismo, prática adotada pelos
essênios, dos quais os apóstolos assimilavam ainda a crença na imortalidade e
na ressurreição, isto é, na volta da alma à vida espiritual, à vida do espaço.
Daí a moral e o ensino
que atraíam numerosos prosélitos em torno dos discípulos do Cristo, porque nada
continham que se não pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas
sinagogas.
Com Paulo e depois dele,
novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas no seio das comunidades
cristãs. Sucessivamente, a predestinação e a graça, a divindade do Cristo, a
queda e a redenção, a crença em Satanás e no inferno, serão lançados nos
espíritos e virão alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento do filho de
Maria.
Esse estado de coisas
vai continuar e se agravar, ao mesmo tempo em que convulsões políticas e
sociais hão de agitar a infância do mundo cristão.
Os primeiros Evangelhos
nos transportam à época perturbada em que a Judéia, sublevada contra os
romanos, assiste à ruína de Jerusalém e à dispersão do povo judeu (ano 70). Foi
no meio do sangue e das lágrimas que eles foram escritos, e as esperanças que
traduzem parecem irromper de um abismo de dores, enquanto nas almas contristadas
desperta o ideal novo, a aspiração de um mundo melhor, denominado “reino dos
céus”, em que serão reparadas todas as injustiças do presente.
Nessa época, todos os
apóstolos haviam morrido, com exceção de João e Filipe; o vínculo que unia os
cristãos era bem fraco ainda. Formavam grupos isolados entre si e que tomavam o
nome de igrejas (ecclesia, assembléia), cada qual dirigido por um bispo ou
vigilante escolhido eletivamente.
Cada igreja estava
entregue às próprias inspirações; apenas tinha para se dirigir uma tradição
incerta, fixada em alguns manuscritos, que resumiam mais ou menos fielmente os
atos e as palavras de Jesus e que cada bispo interpretava a seu talante.
Acrescentemos a estas
tão grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa
época em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos
copistas, todos os males que podem fazer nascer à ausência de direção e de
crítica, e facilmente compreenderemos que a unidade de crença e de doutrina não
tenha podido manter-se em tempos assim tormentosos.
Os três Evangelhos
sinóticos[iv]
acham-se fortemente impregnados do pensamento judeu-cristão, dos apóstolos, mas
já o evangelho de João se inspira em influência diferente. Nele se encontra um
reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da escola de
Alexandria.
Em fins do século 1, os
discípulos dos grandes filósofos gregos tinham aberto escolas em todas as
cidades importantes do Oriente. Os cristãos estavam em contato com eles e
freqüentes discussões se travavam entre os partidários das diversas doutrinas.
Os cristãos, arrebanhados nas classes inferiores da população, pouco letrados
em sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do pensamento. Por
outro lado, os teoristas gregos sentiram-se impressionados pela grandeza e
elevação moral do Cristianismo. Daí uma aproximação, uma penetração das
doutrinas, que se produziu em certos pontos. O Cristianismo nascente sofria
pouco a pouco as influências gregas, que o levava a fazer do Cristo o verbo, o
Logos de Platão.
2
Autenticidade dos Evangelhos
Nos tempos afastados,
muito antes da vinda de Jesus, a palavra dos profetas, qual raio velado da
verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.
Mas, já desvirtuado pela
versão dos Setenta, o Antigo Testamento não refletia, nos últimos séculos antes
do Cristo, mais que uma intuição das verdades superiores[v].
“As eternas verdades,
que são os pensamentos de Deus – diz eminente individualidade do espaço – foram
comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os meios, postas ao
alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem
desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado por
suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver.
Essa negligência do belo moral, causa de decadência e corrupção, impeliria as
nações à própria perda, se o guante da adversidade e as grandes comoções da
História, abalando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”
Veio Jesus, espírito
poderoso, divino missionário, médium inspirado. Veio, encarnando-se entre os
humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto,
cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra impagáveis
traços.
A grande figura de Jesus
ultrapassa todas as concepções do pensamento. Eis por que não a pode ter sido
criada pela imaginação. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota
mácula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma
harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.
Sua doutrina, toda luz e
amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses
homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso
da matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que
as deve reanimar e consolar.
E essa palavra lhes é
prodigalizada com tão penetrante doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que
lhes dissipa todas as dúvidas e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.
O que Jesus chamava
pregar aos simples “o evangelho do reino dos céus”, era pôr ao alcance de todos
o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na
serenidade da consciência e na paz do coração.
Pouco a pouco essa
doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se
altera e complica sob a influência das correntes opostas, que agitam a
sociedade cristã.
Os apóstolos, escolhidos
por Jesus para lhe continuarem a missão, muito bem o tinham sabido compreender;
haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos
eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do
coração, as tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes
havia ele depositado no íntimo.
Em sua jornada pelo
mundo os apóstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de
cristãos, aos quais revelam os princípios essenciais; depois, vão
intrepidamente levar a “boa nova” a outras regiões.
Os Evangelhos, escritos
em meio das convulsões que assinalam a agonia do mundo judaico, depois sob a
influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo,
se ressentem das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação dos
espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem seus evangelhos, que
diferem mais ou menos dos outros[vi].
Grandes querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas
perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a supremacia ao papado,
impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade. A partir daí, o pensamento,
criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, há de ser reprimido.
A fim de pôr termo a
essas divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam
de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua
divindade, o papa Damaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de redigir uma
tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí
por diante, a única reputada ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da
Igreja: foi o que se denominou a “Vulgata”.
Esse trabalho oferecia
enormes dificuldades. São Jerônimo achava-se, como ele próprio o disse, em
presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa variedade infinita dos
textos o obrigava a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com
as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra, prefácios
reunidos em um livro célebre. Eis aqui, por exemplo, o que ele dirigiu ao papa
Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos Evangelhos:
“De velha obra me
obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como
árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo
e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o
verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo,
da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer
mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido.
“Qual, de fato, o sábio
e mesmo o ignorante que, desde que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de
o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que
está habituado a ler, não se ponha imediatamente a clamar que eu sou um
sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir,
corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans
esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare,
corrigere.[vii]
“Um duplo motivo me
consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me
ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas
que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”
São Jerônimo assim termina:
“Este curto prefácio
tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus,
Marcos, Lucas e João. Depois de haver comparado certo número de exemplares
gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los
de tal modo (ita calamo temperavimus)
que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o
resto tal qual estava.” (Obras de São Jerônimo, edição dos Beneditinos, 1693,
t. I, col. 1425.)
Assim, é conforme uma
primeira tradução do hebraico para o grego, por cópias com os nomes de Marcos e
Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um
dos quais difere dos outros (tot sunt
enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, tradução
corrigida, aumentada, modificada, como o confessa o autor, de antigos
manuscritos.
Essa tradução oficial,
que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execução,
foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por ordem dos pontífices
romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado
em 1546 pelo concílio ecumênico de Trento, foi declarado insuficiente e errôneo
por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição
que daí resultou, e que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII em
uma nova edição, que é a que hoje está em uso e pela qual têm sido feitas as
traduções francesas dos livros canônicos, submetidos a tantas retificações
através dos séculos.
Entretanto, a despeito
de todas essas vicissitudes, não hesitamos em admitir a autenticidade dos
Evangelhos em seus primitivos textos. A palavra do Cristo aí se ostenta
poderosa; toda dúvida se desvanece à fulguração da sua personalidade sublime.
Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da primitiva
idéia. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza desses ensinos,
unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.
Ao lado, porém, dessa
potente destra, a frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas
enxertando débeis concepções, ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que,
a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.
Se os Evangelhos são
aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspeção
do raciocínio. Todas as palavras, todos os fatos que neles estão consignados
não poderiam ser atribuídos ao Cristo.
Através dos tempos que
separam a morte de Jesus da redação definitiva dos Evangelhos, muitos
pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos fatos contestáveis aceitos como
reais, muitos preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo.
Para servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os
mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar,
os fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença,
à que eles hoje em dia inda procuram.
O pensamento do Cristo
subsiste no ensino da Igreja e nos sagrados textos, mesclado, porém, de vários
elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo
intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja.
Tal foi o objetivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou
todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A despeito de tudo o que na
Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente
para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das
igrejas cristãs e que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos
ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domínio e aos bens
materiais.
Seria preciso grande
trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos
Evangelhos, trabalho possível, posto que árduo para os inspirados, dirigidos
por segura, mas labor impossível para os que só por suas próprias faculdades se
dirigem nesse Dédalo em que com as realidades se misturam as ficções, com o
sagrado o profano, com a verdade o erro.
Em todos os séculos,
impelidos por uma força superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa,
procurando desembaraçar o supremo pensamento das sombras em torno dele
acumuladas.
Amparados, esclarecidos
por essa divina centelha que para os homens apenas brilha de um modo
intermitente, mas cujo foco jamais se extingue, eles afrontaram todas as
acusações, todos os suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade.
Tais foram os apóstolos da Reforma.
Eles foram, em sua
tarefa, interrompidos pela morte; mas do seio do espaço ainda sustentam e
inspiram os que se batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a
noite que pesa sobre as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma
revelação muito mais vasta.
É com o auxílio dos
esclarecimentos trazidos por essa nova revelação, científica e, ao mesmo tempo,
filosófica, já espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno
Espiritualismo, que procuraremos escoimar a doutrina de Jesus das obscuridades
em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que
essa doutrina é simplesmente à volta ao Cristianismo primitivo, sob mais
precisas formas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornará
impossível todo monopólio, toda reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento
de Jesus.
3
Sentido oculto dos Evangelhos
Uma certa escola atribui
ao Cristianismo em geral, e aos Evangelhos em particular, um sentido oculto e
alegórico. Alguns pensadores e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de
Jesus, vendo nele, nas suas palavras, nos fatos da sua vida, uma idéia
filosófica, uma abstração a que foi dado um corpo, para satisfazer a tradição
que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias.
Na sua opinião, não
passaria a história de Jesus de um drama poético, representando o nascimento, a
morte e a ressurreição da idéia libertadora no seio do povo hebreu escravizado,
ou ainda uma série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o
lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino e humano
em um modelo de perfeição, oferecido à admiração dos homens.
Aceita semelhante tese,
os Evangelhos deveriam ser considerados fábulas, invenções. O poderoso
movimento do Cristianismo teria tido como ponto de partida uma impostura. Há
nisso uma evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção,
como pôde ser acolhida por seus contemporâneos, a princípio, e depois por uma
longa série de gerações?
Quais seriam, pois, os
verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais
concepções. Com exceção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a
incapacidade deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus se destaca,
vigorosamente, do fundo de mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação
faz sobressair a impossibilidade de semelhante hipótese.
Não foi difícil, nos
Evangelhos, distinguir as adições dos cristão-judeus, as quais denunciam
claramente a sua origem, e formam contraste flagrante com as palavras e a
doutrina de Jesus.[viii]
Daí resulta um fato evidente, o de que autores imbuídos, a esse respeito, de
idéias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar uma personalidade,
uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus.
Nesse mundo judaico,
sombrio e exclusivista, em que reinavam o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor
e da fraternidade só podia emanar de uma inteligência sobre-humana.
Se as Escrituras fossem,
em seu conjunto, não mais que um amontoado de alegorias, uma obra de
imaginação, a doutrina de Jesus não teria podido manter-se através dos séculos,
em meio das correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. Construção sem
alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão dos tempos.
Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a despeito das alterações
sofridas, a despeito de tudo o que os homens fizeram para desfigurá-la, para
submergi-la nas vagas de uma interpretação errônea.
A crença num mito não
teria sido suficiente para inspirar aos primeiros cristãos o espírito de
sacrifício, o heroísmo em face da morte; não lhes teria proporcionado os meios
de fundar uma religião que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a
ação do tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não
obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é, positivamente, a
pedra angular do Cristianismo, a alma da nova revelação. Ele constitui toda a
sua originalidade.
Além disso, não faltam
testemunhos históricos da existência de Jesus, posto que em reduzido número.
Suetônio, na história
dos primeiros Césares, fala do suplício de “Christus”. Tácito e ele mencionam a
existência da seita cristã entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por
Tito.
O Talmude fala da morte
de Jesus na cruz e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse
testemunho[ix].
Em caso de necessidade,
o próprio Evangelho, só por si, bastaria para fornecer a prova moral da
existência e da elevada missão do Cristo. Se numerosos fatos apócrifos nele
foram mais tarde introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob
a forma de narrativas fantasistas e obsoletas teorias, duas coisas nele
subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um caráter de
autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Calvário e a doce e profunda
doutrina de Jesus.
Essa doutrina era
simples e clara em seus princípios essenciais; dirigia-se à multidão, sobretudo
aos deserdados e aos humildes. Tudo nela era feito para mover os corações, para
arrebatar as almas até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências.
Todavia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas vezes
por parábolas. Seu pensamento, de ordinário tão luminoso, mergulha por vezes em
meia obscuridade. Não se percebem, então, mais que os vagos contornos de uma
grande idéia dissimulada sob o símbolo.
É o que ele próprio
explica por estas palavras, quando, citando Isaías (cap. VI, 9), acrescenta:
“Eu lhes falo por
parábolas, porque a vós outros vos é dado conhecer os mistérios do reino dos
céus, mas a eles não lhes é concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.)
Evidente que havia duas
doutrinas no Cristianismo primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob
formas acessíveis a todos, e outra oculta, reservada aos discípulos e
iniciados. É o que, de resto, existia em todas as filosofias e religiões da
antiguidade.[x]
A prova da existência
desse ensino secreto se encontra nas palavras já citadas e nas que mencionamos
a seguir. Logo depois da parábola do semeador, que se acha nos três evangelhos
sinóticos, os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes
responde:
“A vós outros é concedido
saber o mistério do reino de Deus; mas, aos que são de fora, tudo se lhes
propõe em parábolas;
“Para que, vendo, vejam
e não vejam e ouvindo, ouçam e não entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas,
VIII, 10.).
São Paulo o confirma em
sua primeira Epístola aos Coríntios, capítulo III, quando distingue a linguagem
a usar com homens carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou
com iniciados.
A iniciação era
indubitavelmente gradual. Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem
recebido a unção, entravam na comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis
estas palavras de João:
“Vós outros tendes a
unção do Santo e sabeis todas as coisas. Eu não vos escrevi como se ignorásseis
a verdade, mas como a quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e
27.).[xi]
Ao tempo de sua
controvérsia com Celso, Orígenes defendeu energicamente o Cristianismo. Em sua
vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião.
Tendo-a Celso argüido de possuir um cunho misterioso, refuta Orígenes essas
críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados
recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, em seu sentido
geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é que o mundo inteiro (ou
pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões
prediletas dos filósofos.
Esse duplo método de
ensino – prossegue ele, em síntese – é, ao demais, adotado em todas as escolas.
Por que fazer por isso uma censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos
mistérios, por toda parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por
todos geralmente admitidos?
O fundador do
Cristianismo não separava a idéia religiosa da sua aplicação social. O “reino
dos céus” era, para ele, essa perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem
desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir de encontro aos interesses
estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um
novo motivo para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que em sua doutrina
ia ferir as idéias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou
religiosas.
As obscuridades do
Evangelho são, pois, calculadas, intencionais. As verdades superiores nele se
ocultam sob véus simbólicos. Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para
se conduzir moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido
filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria.
Nisso consistia a
“comunhão dos santos”, a comunhão dos pensamentos elevados, das altas e puras
aspirações. Essa comunhão pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o
egoísmo, bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os
bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a princípio,
tornaram-se poderosos e autoritários. Constituiu-se a teocracia; a esta,
pareceu de interesse colocar a luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O
pensamento profundo desapareceu. Só ficaram os símbolos materiais. Essa
obscuridade tornava mais fácil governar as multidões. Preferiram deixar as
massas mergulhadas na ignorância, a elevá-las às eminências intelectuais. Os
mistérios cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram
mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que
se esforçavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se a noite cada
vez mais espessa sobre o mundo, depois da dissolução do Império Romano. A
crença em Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em
vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi à religião do
terror.
A invasão dos bárbaros
havia poderosamente contribuído para fazer surgir esse estado de coisas. Ele
fez voltar a sociedade ao estado de infância, porque os bárbaros invasores, no
ponto de vista da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e
das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a Civilização.
Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o Cristianismo aliciou,
produziram no mundo pagão em decadência e no meio novo, em que penetravam, uma depressão
intelectual.
O Cristianismo conseguiu
dominá-las, submetê-las, mas em seu próprio detrimento. Velou-se o ideal
divino; o culto se tornou material. Para impressionar a imaginação das
multidões, voltou-se às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da
Humanidade. A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperança,
estranhos dogmas foram combinados. Não se tratou mais de realizar no mundo o
reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal dos primeiros cristãos.
Depois, a profecia do fim do mundo e do juízo final, tomada ao pé da letra, as
preocupações da salvação individual, exploradas pelos padres, mil causas em
suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento
de Jesus numa torrente de superstições.
Ao lado, todavia, desses
males, é justo recordar os serviços prestados pela Igreja à causa da
Humanidade. Sem a sua hierarquia e sólida organização, sem o papado, que opôs o
poder da idéia, posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se
o direito de perguntar o que se teria tornado a vida moral, a consciência da
Humanidade. No meio desses séculos de violência e trevas, a fé cristã animou de
novo ardor os povos bárbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as
Cruzadas, à fundação da Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No
silêncio e na obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A
vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito dos
costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preciso agradecer à Igreja,
não obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o
domínio das almas.
Em resumo, a doutrina do
grande crucificado, em suas formas populares, queria a obtenção da vida eterna
mediante o sacrifício do presente. Religião de salvação, de elevação da alma
pela subjugação da matéria, o Cristianismo constituía uma reação necessária
contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas não
passando de foco de sensualismo e corrupção. O Cristianismo tornava-se um
estágio indispensável na marcha da Humanidade, cujo destino é elevar-se
incessantemente de crença em crença, de concepção em concepção, a sínteses
sempre e cada vez mais amplas e fecundas.
O Cristianismo, com os
seus doze séculos de dores e trevas, não foi uma era de felicidade para a raça
humana; mas o fim da vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo
trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e
a via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a dos prazeres.
O Cristianismo
representa, pois, uma fase da história da Humanidade, a qual lhe foi
incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade, não teria sido capaz de
realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro se não se tivesse
impregnado do pensamento e da moral evangélicos.
A Igreja, entretanto,
delinqüiu, trabalhando por prolongar indefinidamente o estado de ignorância da
sociedade. Depois de haver nutrido e amparado à criança, tem querido mantê-la
em estado de submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência
senão para melhor a oprimir.
A Igreja de Roma não
soube conservar o farol divino de que era portadora e, por um castigo do céu,
ou antes, por uma justa retroação das coisas, a noite que ela queria para os
outros fez-se nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento
das ciências e da filosofia, a ponto de proscrever, do alto da cadeira de São
Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a civilização moderna”
(artigo 80 do Sílabus).
Foi, por isso, fora dela
e mesmo contra ela, a partir de um certo momento da História, que se operou
todo o movimento, toda a evolução do espírito humano. Foram necessários séculos
de esforços para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da
Idade Média. Fizeram-se precisas a Renascença das letras, a Reforma religiosa
do século XVI, a filosofia, todas as conquistas da Ciência, para preparar o
terreno destinado à nova revelação, a essas vozes de além-túmulo que vêm aos
milhares e em todas as regiões da Terra, atrair os homens aos puros
ensinamentos do Cristo, restabelecer sua doutrina, tornar compreensíveis, a
todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades.
4
A Doutrina Secreta
Qual a verdadeira
doutrina do Cristo? Os seus princípios essenciais acham-se claramente
enunciados no Evangelho. É a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos
homens, com as conseqüências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos
franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino de Deus”,
isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdão das
injúrias e o amor ao próximo.
Para Jesus, numa só
palavra, toda a religião, toda a filosofia consiste no amor:
“Amai os vossos
inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e
caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual faz
erguer-se o seu sol sobre bons e maus, e faz chover sobre justos e injustos.
Porque, se não amais senão os que vos amam, que recompensa deveis ter por
isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).
Desse amor o próprio
Deus nos dá o exemplo, porque seus braços estão sempre abertos para o pecador:
“Assim, vosso Pai que
está nos céus não quer que pereça um só desses pequeninos.”
O sermão da montanha
resume, em traços indeléveis, o ensino popular de Jesus. Nele é expressa a lei
moral sob uma forma que jamais foi igualada.
Os homens aí aprendem
que não há mais seguros meios de elevação que as virtudes humildes e
escondidas.
“Bem-aventurados os pobres
de espírito (isto é, os espíritos simples e retos), porque deles é o reino dos
céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. –
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. –
Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. –
Bem-aventurados os limpos de coração, porque esses verão a Deus.” (Mateus, V, 1
a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)
O que Jesus quer não é
um culto faustoso, não é umas religiões sacerdotais, opulentas de cerimônias e
práticas que sufocam o pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de
sentimento, consistindo na relação direta, sem intermediário, da consciência
humana com Deus, que é seu Pai:
“É chegado o tempo em
que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, porque
tal quer, também, sejam os que o adorem. Deus é espírito, e em espírito e
verdade é que devem adorar os que o adoram.”
O ascetismo é coisa vã.
Jesus limita-se a orar e a meditar, nos sítios solitários, nos templos naturais
que têm por colunas as montanhas, por cúpula a abóbada dos céus, e de onde o
pensamento mais livremente se eleva ao Criador.
Aos que imaginam
salvar-se por meio do jejum e da abstinência, diz:
“Não é o que entra pela
boca o que macula o homem, mas o que por ela sai.”
Aos rezadores de longas
orações:
“Vosso Pai sabe do que
careceis, antes de lho pedirdes.”
Ele não exige senão a
caridade, a bondade, a simplicidade: “Não julgueis e não sereis julgados.
Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é
misericordioso. Dar é mais doce do que receber”.
“Aquele que se humilha
será exaltado; o que se exalta será humilhado”.
“Que a tua mão esquerda
ignore o que faz a direita, a fim de que tua esmola fique em segredo; e então
teu Pai que vê no segredo, te retribuirá.”
E tudo se resume nestas
palavras de eloqüente concisão:
“Amai o vosso próximo
como a vós mesmos e sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se
encerram toda a lei e os profetas.”
Sob a suave e meiga
palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se
reveste de um encanto irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna
solicitude pelos fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da
pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o
homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede os velos da alma e a retém longe
do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade, desatam esses laços e facilitam a
ascensão para a luz.
Por isso é que a
doutrina evangélica permaneceu através dos séculos como a expressão máxima do
espiritualismo, o supremo remédio aos males terrestres, a consolação das almas
aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É
ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar,
toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.
*
A doutrina secreta ia
mais longe. Sob o véu das parábolas e das ficções, ocultava concepções
profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe
as formas afirmando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma,
reencarnada em novos corpos, sofreria as conseqüências de suas vidas anteriores
e prepararia as condições do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos
mundos habitados, as alternações de vida de cada ser: no mundo terrestre, em
que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela
morte, colhendo em um e outro desses meios os frutos bons ou maus do seu
passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses dois mundos e, por
conseguinte, a comunicação possível do homem com os espíritos dos mortos que
povoam o espaço ilimitado.
Daí o amor ativo, não
somente pelos que sofrem na esfera da existência terrestre, mas também pelas
almas que em torno de nós vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí
a dedicação que se devem as duas humanidades, visível e invisível, a lei de
fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam “os mistérios”,
a comunhão pelo pensamento e pelo coração com os que, Espíritos bons ou
medíocres, inferiores ou elevados, compõem esse mundo invisível que nos rodeia,
e sobre o qual se abrem esses dois pórticos por onde todos os seres
alternativamente passam: o berço e o túmulo.
A lei da reencarnação
acha-se indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob
dois aspectos diferentes: à volta à carne, para os Espíritos em via de
aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.
Em sua conversação com
Nicodemos, Jesus assim se exprime:
“Em verdade te digo que,
se alguém não renascer de novo, não poderá ver o reino de Deus.” Objeta-lhe Nicodemos:
“Como pode um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade te
digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no
reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito
é espírito. Não te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. O
vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para
onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)
Jesus acrescenta estas
palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”
O que demonstra que não
se tratava do batismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas
precisamente da reencarnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus.[xii]
Esse vento, ou esse
espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe novo corpo, nova
morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única
explicação satisfatória.
Na Cabala hebraica, a
água era a matéria primordial, o elemento frutificado. Quanto à expressão
Espírito Santo, que se acha no texto e que o torna incompreensível, é preciso
notar que a palavra santo nele não se encontra em sua origem e que foi aí
introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos.[xiii]
É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.
Noutra ocasião, a
propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos
perguntam a Jesus:
“Mestre, quem foi que
pecou? Foi este homem, ou seu pai, ou sua mãe, para que ele tenha nascido
cego?” (João, IX, 1 e 2).
A pergunta indica, antes
de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação. Em
seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial.
É a lei da conseqüência dos atos, fixando as condições do destino. Trata-se aí
de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência
anterior.
Daí essa idéia da
penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”,
dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa
nova existência; retificai vosso passado, espiritualizai-vos, porque não
saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de
“haverdes pagado até o último ceitil.” (Mateus, V, 26).
Em vão têm procurado os
teólogos explicar doutro modo, que não pela reencarnação, essa passagem do Evangelho.
Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de
Amsterdã não pôde sair-se da dificuldade senão com esta declaração: “o cego de
nascença havia pecado no seio de sua mãe”.[xiv]
Era também opinião
corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações,
continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo,
voltara à Terra na pessoa de João Batista. Jesus o afirma nestes termos,
dirigindo-se à multidão:
“Que saíste a ver? Um
profeta? Sim, eu vo-lo declaro, e mais que um profeta. E, se o quereis
compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. – O que tem ouvidos para
ouvir, ouça.” (Mateus, XI, 9, 14 e 15)
Mais tarde, depois da
decapitação de João Batista, ele o repete aos discípulos:
“E seus discípulos o
interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir
primeiramente Elias? – Ele, respondendo, lhes disse:”
“Elias, certamente,
devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e
eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram
seus discípulos que de João Batista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10,
11, 12 e 15).
Assim, para Jesus, como
para os discípulos, Elias e João Batista eram a mesma e única individualidade.
Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante
fato não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.
Numa circunstância
memorável, Jesus pergunta a seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”
E eles lhe respondem:
“Uns dizem: é João
Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13,
14; Marcos, VIII, 28)
Jesus não protesta
contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do
cego de nascença. Ao demais, a idéia da pluralidade das vidas, dos sucessivos
graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se acha implicitamente
contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma
única existência?
De novo encontramos a
doutrina secreta, dissimulada sob véus mais ou menos transparentes, nas obras
dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes
dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.
Aos primeiros fiéis
escrevia Barnabé:
“Tanto quanto pude,
acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode
contribuir para vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas
presentes, porque, se vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não
compreenderíeis, porque elas se acham expostas em parábolas.” (Epístola católica
de São Barnabé, XVII, l, 5).
Em observância a esta
regra é que um discípulo de São Paulo, Hermas, descreve a lei das reencarnações
sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem
na construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).
“Porque foram essas
pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa
torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o
senhor, que, antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio
da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que não fosse
despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”
Evidentemente essas
pedras são as almas dos homens; as águas[xv]
são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e
provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente
preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida
celeste. Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja idéia era ainda
admitida no século III e divulgada entre os cristãos.
Dentre os padres da
Igreja, Orígenes é um dos que mais eloqüentemente se pronunciaram a favor da
pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerônimo o
considera, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele
– que só a ignorância poderia negar”. S. Jerônimo vota tal admiração a Orígenes
que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por
esse preço, ele, Jerônimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.
Em seu livro célebre,
“Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram,
na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, em uma palavra, na
sucessão das vidas, o corretivo necessário à aparente desigualdade das
condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que
parece reinarem no mundo, se não se admite mais que uma única existência
terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que
a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a
necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.
Errônea opinião se
introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral, e
da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido
condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedônia e mais tarde pelo quinto
concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes,[xvi]
reconhecemos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das
existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava
Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o
ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.
Na realidade, a questão
da pluralidade das existências da alma jamais foi resolvida pelos concílios.
Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro e é esse um ponto que se
faz preciso estabelecer.
Como a lei dos renascimentos,
a pluralidade dos mundos acha-se indicada no Evangelho, em forma de parábola:
“Há muitas moradas na
casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar e, depois que tiver ido e vos
tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu
estiver, vós estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)
A casa do Pai é o
infinito céu; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço,
esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que mesquinho e
obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a
ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar
um lugar, conforme os nossos méritos.
Orígenes comenta essas
palavras em termos positivos:
“O Senhor faz alusão às
diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado
dos seus corpos atuais e se tiverem revestido de outros novos.”
[i] Excetuado Paulo, versado nas letras.
[ii] Sabatier, diretor da seção dos Estudos
superiores, na Sorbona, "Os Evangelhos Canônicos", pág. 5. A Igreja
sentiu a dificuldade em encontrar novamente os verdadeiros autores dos
Evangelhos. Daí a fórmula por ela adotada: vanfelho segundo...
[iii] Ver notas complementares nºs 2, 3 e 4, no fim
do volume.
[iv] São assim designados os de Marcos, Lucas e
Mateus.
[v] Ver nota complementar nº 1, no fim do
volume.
[vi] Ver nota complementar n° 3.
[vii] A obra de S. Jerônimo foi, efetivamente, mesmo
em sua vida, objeto das mais vivas críticas; polêmicas injuriosas se travaram
entre ele e seus detratores.
[viii] Ver notas complementares nºs 2 e 3.
[ix] Ver "Os deicidas", por Cahen,
membro do Consistório israelita.
[x] Ver minha obra "Depois da Morte",
págs. 9 a 100.
[xi] Ver também nota complementar nº 7.
[xii] Ver nota complementar nº 5.
[xiii] Ver Bellemare, "Espírita e Cristão",
págs. 351 e seguintes.
[xiv] Ver nota complementar n° 5.
[xv] Essa parábola adquire maior relevo pelo fato
de ser a água, para os judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento
primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
[xvi] Ver Pezzani, "A pluralidade das
existências", páginas 187 e 190.
Léon Denis- Cristianismo e Espíritismo
Fonte:
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