quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os incrédulos

                           I
Os incrédulos

Crer que tudo se sabe é um erro profundo:
O horizonte tomar por limites do mundo.
Lemierre.   

Um grande número de homens sofrem de verdadeira miopia intelectual e, segundo a imagem precisa de Lemierre, tomam o seu horizonte pelos limites do mundo. Os fatos novos, as idéias novas os ofuscam, os horripilam. Não querem ver mudança alguma na marcha costumeira das coisas. A história do progresso dos conhecimentos humanos é para eles letra morta.
A audácia dos pesquisadores, dos inventores, dos revolucionários, parece-lhes criminosa. Afigura-se-lhes, aos seus olhos, que a humanidade tenha sido sempre o que é hoje, e eles não se lembram nem da idade da pedra, nem da invenção do fogo ou das casas, das carruagens e dos caminhos de ferro, nem das conquistas do espírito, nem das descobertas da Ciência. Neles ainda se encontram alguns traços da herança dos peixes e quiçá dos moluscos.
Comodamente assentados, de resto, em suas largas poltronas, esses admiráveis burgueses se conservam imperturbavelmente satisfeitos. São absolutamente incapazes de admitir o que não compreendem e nem sequer desconfiam de que nem tudo compreendem.
Ignoram que no fundo da explicação de todos os fenômenos da natureza está o desconhecido e contentam-se com simples mudanças de palavras. Por que razão cai uma pedra? “Porque a Terra a atrai.” Uma resposta assim tão clara basta à sua ambição. Acreditam eles compreender. Uma fraseologia clássica os seduz, como no tempo de Molière: “ossabandus, nequeis, nequer, potarinum quipsa milus... eis aí justamente o que faz que vossa filha seja muda”, dizia Sganarelo.
Em todos os séculos, quaisquer que sejam os graus de civilização, encontram-se desses homens simples, tranqüilos, nem sempre desprovidos de vaidade, que negam candidamente as coisas inexplicáveis e que pretendem julgar a insondável organização do Universo. Tais como duas formigas, em um jardim, entretendo-se a trocar idéias sobre a história da França ou sobre a distância a que nos encontramos do Sol.
Percorramos a História e edifiquemo-nos com alguns desses exemplos.
A escola de Pitágoras, libertando-se das idéias comuns sobre a natureza, elevara-se até à noção do movimento diurno do nosso planeta, que poupa ao céu imenso e sem limites a obrigação absurda de girar em vinte e quatro horas em torno de um ponto insignificante. Que o sufrágio universal se revolte contra esta idéia genial, ainda se tolera: não se pode pedir a um elefante que voe até o ninho das águias. Mas a força dos prejuízos vulgares é tal que, mesmo espíritos superiores como o próprio Platão e Arquimedes, essas duas brilhantes inteligências, sentiram-se na impossibilidade de elevar-se a esta concepção, recusada até pelos astrônomos Hipparcho e Ptolomeu. Este não pôde conter-se de rir a bandeiras despregadas de uma tal chocarrice. Qualifica ele a teoria do movimento da Terra de “completamente ridícula”. A expressão é sobremodo pitoresca. Como que se vê o ventre de um bom monge, a sacudir-se e rebolar-se todo, diante de um gracejo desta força, panu guéloïotaton! Deus do céu, como isso é divertido! A Terra a girar! Estão doidos os pitagóricos: a cabeça deles é que gira.
Sócrates bebe a cicuta por se ter libertado das superstições de seu tempo. Anaxágoras é perseguido por ter ousado ensinar que o Sol é maior que o Peloponeso. Dois mil anos mais tarde, Galileu é perseguido, a seu turno, por afirmar a grandeza do sistema do mundo e a insignificância do nosso planeta.
A passos lentos avança a pesquisa da verdade, mas as paixões humanas e os cegos interesses dominadores permanecem inalteráveis.
E a dúvida ainda perdura, apesar das provas acumuladas por toda a moderna astronomia. Não possuímos nós, em nossas bibliotecas, uma obra publicada em 1806, expressamente contra o movimento da Terra e na qual seu autor declara que jamais poderá admitir esteja ela a girar como um capão assado ao espeto?
Esse intrépido capão era um homem, aliás, de bastante espírito (o que não exclui a ignorância); era um membro do Instituto, ostentando o nome de Mercier, mais conhecido por seu Tableau de Paris e que se poderia supor dotado de um critério mais elevado e mais firme.
Assistia eu, certo dia, a uma sessão da Academia das Ciências, dia esse de hilariante recordação, em que o físico du Moncel apresentou o fonógrafo de Édison à douta assembléia. Feita a apresentação, pôs-se o aparelho docilmente a recitar a frase registrada em seu respectivo cilindro. Viu-se então um acadêmico de idade madura, de espírito penetrado, saturado mesmo das tradições de sua cultura clássica, nobremente revoltar-se contra a audácia do inovador, precipitar-se sobre o representante de Édison e agarrá-lo pelo pescoço, gritando: “Miserável! nós não seremos ludibriados por um ventríloquo!” Senhor Bouillaud chamava-se este membro do Instituto. Foi isso a 11 de março de 1878. Mais curioso ainda é que seis meses após, a 30 de setembro, em uma sessão análoga, sentiu-se ele muito satisfeito em declarar que, após maduro exame, não constatara no caso mais do que simples ventriloquia, mesmo porque “não se pode admitir que um vil metal possa substituir o nobre aparelho da fonação humana”. Segundo esse acadêmico, o fonógrafo não era mais do que uma “ilusão de acústica”.
Quando Lavoisier procedeu à análise do ar e descobriu que o mesmo se compõe principalmente de dois gases, o oxigênio e o azoto, essa descoberta desconcertou mais de um espírito positivo e equilibrado.
Um membro da Academia das Ciências, o químico Baumé (inventor do areômetro), acreditando firmemente nos quatro elementos da ciência antiga, escrevia em tom doutoral: “Os elementos ou princípios dos corpos têm sido reconhecidos e confirmados pelos físicos de todos os séculos e de todas as nações. Não é presumível que esses elementos, considerados como tais durante um lapso de dois mil anos, sejam postos, em nossos dias, em o número das substâncias compostas, e que se possa dar como certos tais processos para decompor a água e o ar e tais raciocínios absurdos, para não dizer coisa pior, com que se pretende negar a existência do fogo e da terra.
As propriedades reconhecidas nos elementos correspondem a todos os conhecimentos físicos e químicos adquiridos até o presente; têm elas servido de base a uma infinidade de descobertas e de teorias, cada qual mais luminosa, às quais seria preciso retirar toda confiança, se o fogo, o ar, a água e a terra não fossem mais reconhecidos como elementos.
Todo o mundo sabe hoje em dia que esses quatro elementos, tão religiosamente defendidos, não existem e que a razão está do lado dos químicos modernos que conseguiram decompor o ar e a água. Quanto ao fogo ou flogístico que, segundo Baumé e seus contemporâneos, era o deus ex machina da natureza e da vida, ele jamais existiu senão na imaginação dos professores.
O próprio Lavoisier, esse grande químico, não está indene da mesma acusação contra os que “supõem tudo descoberto”, pois que dirigiu um sábio relatório à Academia para demonstrar que não podem cair pedras do céu. Ora, a queda de aerólitos, a propósito da qual ele escreveu esse relatório oficial, tinha sido observada em todos os seus detalhes: tinha-se visto e ouvido o bólido explodir, bem como o aerólito cair, tendo sido levantado do chão ainda ardente, para ser em seguida submetido ao exame da Academia. E esta declarou, pelo órgão do seu relator, que a coisa era inacreditável e inadmissível. Assinalemos também que há milhares de anos caem pedras do céu diante de centenas de testemunhas, que tem sido apanhado grande número dessas pedras, tendo sido conservadas diversas nas igrejas, nos museus, nas coleções. Mas faltava ainda, no fim do último século, um homem independente para afirmar que de fato caem essas pedras do céu: tal homem foi Chladui.
Não atiro pedras em Lavoisier nem noutra qualquer pessoa, entenda-se bem, mas na tirania dos prejuízos. Não se acreditava, não se queria acreditar que pudessem cair pedras do céu. Isso parecia contrário ao bom senso. Por exemplo, Gassendi é um dos espíritos mais independentes e mais esclarecidos do século XVII. Um aerólito que pesava trinta quilogramas caiu na Provença, em 1627, em um dia de sol muito claro: Gassendi viu-o, tocou-o, examinou-o – e o atribuiu a qualquer erupção vulcânica terrestre desconhecida.
Os professores peripatéticos do tempo de Galileu afirmaram de forma doutoral que o Sol não podia ter manchas.
O espectro de Brocken, a fata Morgana, a miragem foram negados por grande número de pessoas sensatas, enquanto não puderam ser explicados.
Não há muito tempo ainda (1890) que a faísca elétrica era posta em dúvida em plena Academia das Ciências de Paris, por aquele mesmo dos membros do Instituto, que melhor devia conhecê-la.
A história dos progressos da Ciência mostra-nos, a cada instante, que de observações simples e quase vulgares podem provir grandes e fecundos resultados.
No domínio do estudo científico não se deve desdenhar de coisa alguma. Que maravilhosa transformação da vida moderna foi produzida pela eletricidade! Telégrafo, telefone, luz elétrica, motores ligeiros e rápidos, etc. Sem a eletricidade, as nações, as cidades, os costumes seriam bem outros. Sem ela, por exemplo, a locomotiva a vapor não teria experimentado tantos melhoramentos, porque se as estações não pudessem comunicar-se instantaneamente umas com as outras, os trens não poderiam circular com segurança em suas linhas. Ora, o berço dessa admirável fada está humildemente velado nos primeiros albores, apenas sensíveis, da nascente aurora. Não se distinguem aí mais do que elementos muito vagos, que olhares perspicazes tiveram a glória de assinalar e de apontar à atenção do mundo.
É digno de rememoração o caldo de rãs de Mme. Galvâni, em 1791. Galvâni desposara a encantadora filha de seu antigo professor, Lúcia Galeózzi e amava-a enternecidamente. Estava ela doente dos pulmões em Boulogne. O médico recomendara um caldo de rãs, alimento aliás excelente. O próprio Galvâni se dispôs a prepará-lo.
Assentado na varanda de sua casa, conta-se, esfolara ele um certo número desses pequenos animais, pendurando os membros inferiores, separados do tronco, no gradil de ferro, por meio de pequenos grampos de cobre que serviam às suas experiências, quando notou, com admiração justificada pela estranheza do fenômeno, que as pernas das rãs agitavam-se convulsivamente, todas as vezes que tocavam acidentalmente o ferro do gradil. Galvâni, que era professor de física na universidade de Bolonha, estudou o fato com rara sagacidade e descobriu logo as condições necessárias para reproduzi-lo.
Tomemos os membros inferiores de uma rã esfolada; observemos os nervos lombares, os filamentos brancos. Se tomarmos esses nervos e os envolvermos em uma folha de estanho e se colocarmos as pernas, em estado de flexão, sobre uma lâmina de cobre, então, fazendo a pequena lâmina de estanho tocar a lâmina de cobre, veremos imediatamente os músculos contraírem-se, sendo repelido com bastante força qualquer pequeno obstáculo contra o qual esteja apoiada a extremidade das patas da rã. Tal a experiência a que Galvâni foi conduzido fortuitamente; deve-se a ele a descoberta que tem o seu nome: o galvanômetro, que deu origem, logo em seguida, à pilha de Volta, à galvanoplastia e a tantas outras aplicações da eletricidade.
A observação do físico de Bolonha foi recebida com imensa explosão de riso, à exceção de alguns sábios circunspectos que lhe deram a merecida atenção. Entristeceu-se muito com isso o pobre inventor. “Sou atacado – escrevia ele em 1792 – por duas seitas perfeitamente opostas: a dos sábios e a dos ignorantes. Uns e outros riem-se de mim e me chamam mestre de dança das rãs. Entretanto eu sei que descobri uma das forças da Natureza.”
Não fora, pela mesma época, em absoluto negado o magnetismo humano, em Paris, pela Academia das Ciências e pela Faculdade de Medicina? Esperou-se para o acreditar (e demos graças a Deus!) que Jules Cloquet operasse de um câncer no seio, sem dor, uma mulher previamente magnetizada.[i]
O mesmo aconteceu com a descoberta da circulação do sangue: Guy-Patin e a Faculdade não acicataram Harvey com os seus sarcasmos?
Conheci em Turim, em 1873, um descendente, muito pobre, do marquês de Jouffroy, meu compatriota do Alto-Marne, inventor dos barcos a vapor, em 1776. Sabe-se que este engenheiro inventor esgotara todos os seus recursos em demonstrar a possibilidade de aplicar o vapor à navegação. Um primeiro barco deslizou sobre o rio Doubs, em Baume-les-Dames. Um outro subiu o Saôna, em Lião, até à ilha de Barbe. Para a exploração do seu invento, Jouffroy tentou fundar uma companhia: tornava-se-lhe necessário, porém, um privilégio. Submetida pelo governo a questão à Academia das Ciências, esta, sob a inspiração de Perier (o autor da bomba de incêndio de Chaillot), respondeu com um parecer desfavorável. Todo o mundo, ainda por cima, assediava o pobre marquês com zombarias por causa de sua pretensão de “querer conciliar o fogo com a água” e saudavam-no com o apelido de “Jouffroy da Bomba”. O infeliz inventor acabou por perder a coragem, emigrando em seguida por ocasião da Revolução, para retornar à França durante o Consulado, constatando então que Fulton, por sua vez, não era mais feliz com o primeiro cônsul do que ele mesmo tinha sido com o antigo regime. Por outro lado, Fulton não pôde convencer, de forma alguma, a Inglaterra, em 1804, e foi somente em 1807 que seu primeiro barco a vapor pôde ser lançado vitoriosamente no Hudson, em sua própria pátria que acabou por lhe fazer justiça, um pouco tardiamente.
Quase todos os inventores têm sido assim tratados. Um outro de meus compatriotas do Alto-Marne, Philippe Lebon, que inventou a iluminação a gás em 1797, morreu em 1804 (assassinado, segundo se diz, nos Campos Elíseos, em Paris) no dia da cerimônia do coroamento do imperador, sem ter visto sua idéia adotada pela pátria. Sobretudo objetava-se que uma lâmpada sem mecha não podia acender-se! A iluminação a gás foi aplicada em 1805 pela Inglaterra, em Birmingham; em 1813 em Londres; em 1818 em Paris.
Na época da criação dos trens de ferro houve engenheiros que demonstraram que esses trens não caminhariam e que as rodas das locomotivas rodariam sempre sobre o mesmo lugar.
Na Câmara dos Deputados, em 1838, Arago arrefeceu o entusiasmo dos partidários da nova invenção, falando da inércia da matéria, da tenacidade dos metais e da resistência do ar. “As velocidades, dizia ele, serão grandes, muito grandes, mas não tanto quanto se tinha esperado. Não nos percamos em palavras. Fala-se do acréscimo do trânsito. Em 1836 o montante total das despesas de transportes, em França, elevou-se a 2.803.000 francos. Se todos os caminhos de ferro projetados fossem construídos, se todo o trânsito se efetuasse pelos trilhos e pelas locomotivas, essa cifra se reduziria a 1.052.000. Importaria isso em uma diminuição anual de 1.751.000 francos. Perderia, portanto, o país cerca de dois terços do custo total do transporte pelas estradas de rodagem. Precatemo-nos da imaginação, essa loucura do conhecimento. Dois trilhos de ferro paralelos não darão uma fase nova aos brejos da Gasconha.” E todo o discurso continua nesse tom! Bem se vê que, quando se trata de idéias novas, podem os maiores espíritos enganar-se.
E o Sr. Thiers dizia: “Admito que os caminhos de ferro apresentarão algumas vantagens para o transporte dos viajantes, se o respectivo uso for limitado a algumas linhas muito curtas, terminando em grandes cidades como Paris. Não se deve pensar em grandes linhas.”
E Proudhon: “É uma opinião banal e ridícula essa de pretender que os caminhos de ferro podem servir à circulação das idéias.”
Na Baviéra, o Colégio Real de Medicina, consultado, declarou que os caminhos de ferro causariam, se fossem construídos, os mais graves danos à saúde pública, porque um movimento, assim tão rápido, provocaria nos viajantes abalos cerebrais e vertigens no público exterior; em conseqüência recomendou o encerramento das linhas entre duas cercas de madeira à altura dos vagões.
Quando foi proposto, em 1853, o estabelecimento de um cabo submarino entre a Europa e a América, uma de nossas grandes autoridades em física, Babinet, do Instituto, examinador na Escola Politécnica, escreveu na Revue des Deux Mondes: “Não posso considerar como sérias essas idéias; a teoria das correntes poderia dar provas insofismáveis da impossibilidade de uma tal transmissão, ainda mesmo que não se tivesse em conta as correntes que por si mesmas se estabelecem em um longo fio elétrico e que são muito sensíveis no pequeno trajeto de Douvres a Calais. O único meio de ligar o antigo ao novo mundo é franquear o estreito de Béring, a menos que se tome a resolução de passar pelas ilhas Féroe, pela Islândia, pela Groenlândia e pelo Labrador.” (!!)
O geólogo Élie de Beaumont, secretário perpétuo da Academia das Ciências, morto em 1874, jamais cessou de negar, em toda a sua vida, a existência do homem fóssil.
Pode-se ler nos relatórios (Comptes Rendus) da Academia das Ciências, com a data de 13 de julho de 1873, que, tendo o Instituto de nomear um correspondente, Darwin foi recusado, para dar lugar a um senhor Loven.
Na Inglaterra, a Sociedade Real recusou em 1841 a inserção, em seus Anais, da mais importante memória do célebre Joule, fundador, em Mayer, da termodinâmica; e Thomas Young, fundador, com Fresnel, da teoria ondulatória da luz, foi ridicularizado por lorde Broughan.
Por outro lado, vendo Mayer, na Alemanha, o cepticismo astuto com que sua imortal descoberta era acolhida pelos sábios oficiais, começou a duvidar de si mesmo e precipitou-se de uma janela abaixo! Um pouco mais tarde as academias estendiam-lhe os braços. O grande eletricista Ohm foi tratado como louco por seus compatriotas alemães.
Quando Franklin comunicou à Sociedade Real de Londres as suas experiências sobre o poder condutor das hastes de ferro para a eletricidade atmosférica, não obteve mais do que uma explosão de hilaridade, e a ilustre companhia recusou terminantemente imprimir seu memorial.
E como deixar de recordar-nos do que sucedeu por ocasião do invento do óculo de alcance! Ninguém lhe compreendeu a importância, e meio século mais tarde o eminente astrônomo Hévélius recusou-se a adaptar vidros aos seus instrumentos para seu Catálogo de estrelas, porque supunha que eles prejudicariam a precisão das determinações de posição.
Exemplos como estes poderiam ser multiplicados até o fim do mundo... São eles suficientes para edificar-nos a respeito de um dos aspectos do espírito humano e de uma das características que não devem ficar à margem da nossa pesquisa da verdade.
Um amigo de trinta anos de afetuosa camaradagem e de doce afinidade intelectual, Eugène Nus, escreveu em uma de suas obras, Choses de l’Autre Monde:
Aos manes dos sábios,
Brevetados, patenteados,
Enfeitados, condecorados e enterrados,
Que repeliram
A rotação da terra,
Os meteoritos,
O galvanismo,
A circulação do sangue,
A vacina,
A ondulação da luz,
O pára-raios,
A daguerreotipia,
O vapor,
A hélice,
Os paquetes,
Os caminhos de ferro,
A iluminação a gás,
O magnetismo,
E o resto;
Aos que, vivos e por nascer, fazem o mesmo,
No presente
E o mesmo no futuro hão de fazer.
Eu acho que seria muita irreverência de minha parte imitá-lo e por isso me absterei de escrever a mesma dedicatória no alto deste livro. Lembro-a, entretanto, e a faço imprimir, porque não deixa ela de ter seu valor filosófico e acrescentarei, com um historiador desses fenômenos, que tais retardatários, por toda parte encontrados, nas ciências, nas artes, na indústria, na política, na administração, etc., têm sua utilidade: “Passados ao estado de marcos, balizam a estrada do progresso.”
Augusto Comte e Littré como que traçaram à Ciência seus rumos definitivos, seus rumos “positivos”. Não admitir senão o que se vê, o que se toca, o que se ouve, o que fica subordinado ao testemunho direto dos sentidos, e não procurar conhecer o incognoscível – eis, há meio século, a regra de conduta da Ciência.
Vejamos, porém. Analisando os testemunhos de nossos sentidos, verificamos que eles nos enganam de um modo absoluto. Vemos o Sol, a Lua e as estrelas girarem em torno de nós: é falso. Sentimos a terra imóvel: é falso. Vemos o Sol levantar-se acima do horizonte: ele está abaixo do horizonte. Tocamos corpos sólidos: não há corpos sólidos. Ouvimos sons harmoniosos: o ar não transporta mais do que ondas em si mesmas silenciosas. Admiramos os efeitos da luz e das cores que fazem viver aos nossos olhos o esplêndido espetáculo da natureza: em realidade não há nem luz, nem cores, mas somente movimentos etéreos obscuros que, influenciando nosso nervo ótico, dão-nos as sensações luminosas. Queimamos o nosso pé ao fogo: é, sem o sabermos, em nosso cérebro somente que reside a sensação da queimadura. Falamos de calor e de frio: não há no Universo nem calor nem frio, mas somente movimento. Como se vê, os nossos sentidos nos enganam a respeito da realidade. Sensação e realidade são coisas distintas.
Não é tudo. Além disso nossos pobres cinco sentidos são insuficientes. Não nos deixam eles sentir mais do que pequeno número dos movimentos que constituem a vida do Universo. Para dar uma idéia do que afirmo, repetirei aqui o que escrevia em Lúmen, há um terço de século: “Desde a última sensação acústica percebida por nosso ouvido, resultante de 36.850 vibrações por segundo, até a primeira sensação ótica percebida por nossos olhos e que é devida a 400.000.000.000.000 de vibrações na mesma unidade de tempo, nada mais podemos perceber. Existe entre esses dois extremos um intervalo enorme, com o qual nenhum de nossos sentidos se põe em relação. Se tivéssemos outras cordas em nossa lira, dez, cem, mil, a harmonia da natureza se traduziria mais completamente, fazendo-as entrar em vibração.” De um lado, somos enganados pelos sentidos; de outro, incompleto é o seu testemunho.
Não há, portanto, motivo para sermos tão orgulhosos de nossos sentidos, nem para erigirmos em princípio uma pretensa filosofia positiva.
Sem dúvida, é necessário utilizarmo-nos do que possuímos. A fé religiosa diz à razão: “Amiguinha, não tens mais do que um candeeiro para te conduzir: apaga-o e deixa-te guiar por mim.” Não é assim que pensamos. Não temos senão um candeeiro, e mesmo assim um mau candeeiro; mas apagá-lo seria o cúmulo da cegueira. Reconhecemos, pelo contrário, em princípio, que a razão, ou, se preferem, o raciocínio, deve sempre e em tudo ser o nosso guia. fora disso nada mais existe. Mas não circunscrevamos a ciência em um círculo estreito. Volto ainda a Augusto Comte, porque é ele o fundador da escola moderna e representa um dos maiores espíritos do nosso século. Limita ele a esfera da astronomia ao que era conhecido em seu tempo. É simplesmente absurdo. “Concebemos – diz ele – a possibilidade de estudar a forma dos astros, suas distâncias, seus movimentos, ao passo que jamais poderemos estudar, qualquer que seja o meio posto em prática, sua composição química.” Este célebre filósofo morreu em 1857. Cinco anos mais tarde, a análise espectral fazia precisamente conhecer a composição química dos astros e classificava as estrelas segundo a ordem de sua natureza química.
Tal qual como os astrônomos do século XVII, que afirmavam não poderem existir mais do que sete planetas.
O desconhecido de ontem é a verdade de amanhã.
Estaríamos em erro, entretanto, supondo que os sábios (certos sábios) e os homens mencionados sejam os únicos responsáveis por esses atos de inércia. Dá-se o mesmo com a maioria da humanidade e o grande público está no mesmo caso. A massa do cérebro humano é pouco mais ou menos a mesma, tanto no sábio, como no literato, no artista, no magistrado, no político, no operário, no agricultor, como igualmente no ocioso.
As censuras que podem ser feitas aos homens cujo espírito é fechado às novas concepções; a esses que, como Napoleão, por exemplo (a quem a invenção teria assegurado a ruína de sua mais poderosa inimiga, a Inglaterra), não compreenderam a invenção do vapor, aplicam-se por assim dizer a todo o mundo. Um homem, aliás, pode ser muito superior com relação a certas faculdades e muito inferior quanto a outras. Os deploráveis exemplos que precedem não levam, pois, à condenação dos sábios em particular e ainda menos à da Ciência. Somente o que se desejaria era não ver os espíritos esclarecidos caírem na falência comum da vulgaridade, e é por causa da estima que eles nos inspiram, que mais assinalamos as suas fraquezas.
É justo lembrarmo-nos, entretanto, que há uma escusa a essas obstruções, a esses obstáculos, a essas resistências. Em geral, ninguém está seguro da realidade nem do valor das coisas novas. Os primeiros barcos a vapor caminhavam mal e não valiam os navios a vela. Os primeiros bicos de gás iluminavam pouco e exalavam mau cheiro. A Terra, na verdade, parece bem fixa e bem estável. A água e o ar parecem, de fato, elementos primários da natureza. Não parece natural que caiam pedras do céu. As primeiras manifestações da eletricidade eram incoerentes. Os caminhos de ferro desarranjavam tudo.[ii]
E depois, se o gênio se avantaja à vulgaridade, uma nova descoberta também se adianta ao seu tempo. É, portanto, natural que haja retardatários e incapazes de compreender certas coisas.
Muito freqüentemente, além disso, os fatos novos, pouco conhecidos, inexplicados, são vagos, complicados, de análise difícil, mal esclarecidos pelos que os apresentam. Quantas dificuldades não teve o magnetismo humano a atravessar, antes de atingir o estado de experimentação científica em que se acha atualmente sob outros nomes! E quanto não foi ele explorado por charlatães que abusavam da credulidade pública! E, nos fenômenos magnéticos, do mesmo modo que nos do Espiritismo, quantas fraudes, superstições, infames mentiras, sem contar as pessoas estúpidas que enganam “para se divertirem!” E de que maravilhosas habilidades não são capazes os prestidigitadores! Pode-se, pois, em parte, desculpar as reservas dos homens de ciência.
A recente descoberta dos raios Roentgen, tão estranha e inacreditável em sua origem, deveria esclarecer-nos sobre a exigüidade do campo de nossas observações habituais. Ver através dos objetos opacos! no interior de um cofre fechado! distinguir a ossatura de um braço, de uma perna, de um corpo, através da carne e da vestimenta! Uma tal descoberta é, sem contradição, inteiramente contrária às nossas habituais certezas. Este exemplo é seguramente um dos mais eloqüentes em favor do axioma: é anticientífico afirmar que as realidades detêm-se no limite dos nossos conhecimentos e das nossas observações.
E que dizer do telefone, que transmite a palavra, não por meio de ondas sonoras, mas por um movimento elétrico! Se pudéssemos falar, com o auxílio de um tubo, entre Paris e Marselha, nossa voz empregaria três minutos e meio para chegar a seu destino e passar-se-ia o mesmo com a do nosso interlocutor, de sorte que a resposta a uma palavra emitida: “Alô! alô!” não nos chegaria senão ao cabo de sete minutos.
Ninguém pensa nisso; entretanto, o telefone é tão absurdo como os raios X, sob o ponto de vista da nossa concepção das coisas anteriores a estas descobertas.
Falamos das cinco portas dos nossos conhecimentos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. Estas cinco portas dão-nos ainda pouco acesso ao mundo exterior, sobretudo as três últimas. O olho e o ouvido vão bem mais longe, mas, de fato, é quase somente a luz que põe o nosso espírito em comunicação com o Universo. Ora, que é a luz? Uma modalidade de vibração do éter excessivamente rápida. A sensação de luz é produzida sobre a nossa retina por vibrações que se prolongam desde 400 trilhões por segundo (extremidade vermelha do espectro luminoso) até 756 trilhões (extremidade violeta). Há muito tempo que foram essas vibrações medidas com precisão. Tanto abaixo como acima desses números, há outras vibrações do éter, não perceptíveis pelos nossos olhos. Para lá do vermelho estão vibrações caloríficas obscuras. Depois do violeta acham-se vibrações químicas actínicas, suscetíveis de serem fotografadas, igualmente obscuras. Muitas outras existem que permanecem para nós desconhecidas. A estas observações acrescentarei hoje, modificando-as e desenvolvendo-as, uma comparação feita recentemente por sir William Crookes, a propósito da conexão provável dos fenômenos do Universo e das lacunas que a nossa organização terrestre apresenta em meio dessa conexão de fenômenos. Tomemos um pêndulo que oscile no ar de segundo em segundo. Dobrando as oscilações desse pêndulo obteremos a série seguinte:

Tempo
Nº de vibrações por segundo
Espectro
2
4
8
16

10º
15º
32
64
128
256
512
1.024
32.768
Som
20º
25º
1.047.576
33.554.432
Desconhecido
30º
1.073.741.824
Eletricidade
35º
40º
45º
34.359.738.368
1.099.511.627.776
35.184.372.088.832
Desconhecido
48º
49º
50º
281.474.976.710.656
562.949.953.421.312
1.125.890.906.842.624
Luz [iii]
55º
56º
57º
36.028.797.018.963.968
72.057.594.037.927.936
144.115.188.075.855.872
Desconhecido
58º
59º
60º
61º
288.230.376.151.711.744
576.460.752.303.423.488
1.152.921.504.606.846.976
2.305.843.009.213.693.952
Raios X
62º
63º
4.611.686.018.427.387.904
9.223.372.036.854.775.808
Desconhecido
No quinto tempo depois da unidade, a 32 vibrações por segundo, entramos na região em que a vibração da atmosfera nos é revelada sob a forma de som. Aí encontramos a nota musical mais baixa. Se, entre os sons musicais, procurarmos um muito grave, por exemplo, a oitava inferior do órgão, perceberemos que as sensações elementares, ainda que formando um todo contínuo, o que é necessário para que o som seja musical, permanecem não obstante distintas, até um certo grau. Quanto mais baixo é o som, diz Helmholtz, tanto melhor distingue nele o ouvido as ondulações sucessivas do ar.
Nos dez graus seguintes, as vibrações por segundo elevam-se de 32 a 32.768; cada duplicação reproduz a mesma nota, em sua oitava superior. O diapasão normal que reproduz a nota vibra 435 vezes por segundo, ou sejam, 870 vibrações duplas. O som mais agudo é produzido por cerca de 36.000 vibrações e aí termina a região do som para um ouvido humano comum. Provavelmente, porém, certos animais a esse respeito mais bem dotados que nós, percebem sons demasiado agudos para os nossos órgãos, isto é, sons cuja rapidez de vibrações passa além desse limite.
Em seguida chegamos a uma região em que a rapidez das vibrações aumenta celeremente, e o meio vibratório não é mais a grosseira atmosfera, mas um meio infinitamente sutil, “um ar mais divino”, chamado éter. Produzem-se aí vibrações de natureza desconhecida.
Continuando a elevação das vibrações, penetramos na esfera das irradiações elétricas.[iv]
A seguir vem a região que se estende do 35º ao 45º grau, de 34.359 milhões a 35.184 bilhões de vibrações por segundo. Ela nos é desconhecida: ignoramos as funções dessas vibrações, mas que elas existam e se achem em ação no Universo é difícil não admitir-se.
Aproximamo-nos agora da região da luz onde se encontram as velocidades compreendidas entre a 48ª e 50ª ordem. A sensação de luz, isto é, as vibrações que transmitem impressões visíveis, está compreendida entre os estreitos limites de cerca de 400 trilhões (luz vermelha) a 756 trilhões (luz violeta), o que não chega a completar um grau.
Os fenômenos da Natureza que se passam constantemente ao nosso redor realizam-se, ao demais, sob a ação de forças invisíveis. O vapor d’água, cuja ação é assaz considerável na climatologia, é invisível. O calor é invisível. A eletricidade é invisível. Os raios químicos são invisíveis. O espectro solar, representando o conjunto dos raios luminosos sensíveis à retina humana (os raios visíveis) é hoje conhecido de todo o mundo. Se fizermos passar um raio de Sol através de um prisma, obteremos à saída deste último uma faixa colorida estendendo-se do vermelho ao violeta. Um grande número de raias o atravessam, sendo as principais indicadas pelas letras de A a H; são linhas de absorção produzidas pelas substâncias que ardem na atmosfera solar e pelo vapor d’água da atmosfera terrestre. Conhecem-se atualmente milhares dessas raias.
Se se faz passar um termômetro à esquerda do espectro visível, para lá do vermelho, vê-se que ele sobe, constatando-se, portanto, que existem aí raios caloríficos invisíveis para nós.
Se se coloca uma placa fotográfica à direita do espectro, para além do violeta, vê-se que ela é impressionada, o que demonstra a existência de raios químicos muito ativos, invisíveis para nós. Observação importante: certos corpos invisíveis podem tornar-se visíveis; assim o urânio e o sulfato de quinina tornam-se visíveis na obscuridade sob as radiações ultravioletas.
Classificam-se hoje todos esses raios pelo seu comprimento de onda: um determinado raio é o espaço percorrido pela onda durante determinado período vibratório. Ainda que os comprimentos de onda das radiações sejam de extrema pequenez, chega-se, graças ao emprego dos crivos de difração, a determiná-los com uma grande precisão. Ei-los:

Cor
Comprimento
de onda
  (nm) *
Vibrações
(trilhões p/
segundo)
Vermelho extremo
734
400
Limite do vermelho e do alaranjado
647
490
Limite do alaranjado e do amarelo
587
558
Limite do amarelo e do verde
535
590
Limite do verde e do azul
492
596
Limite do azul e do índigo (anil)
456
675
Limite do índigo e do violeta
424
700
Violeta extremo
397
756
* nm – nanômetro; equivale a um milionésimo de milímetro.
Porção do infravermelho invisível, calorífica. Comprimento de onda: de 1940 a 734 nm.
Porção do ultravioleta invisível, química. Comprimento de onda: de 397 a 295 nm.
O primeiro desses dois espectros invisíveis foi determinado com grande precisão pelo astrônomo americano Langley, com o auxílio do aparelho de sua invenção, chamado bolômetro.[v] É nesta região invisível que se exerce a maior parte da energia solar. A parte deste espectro já explorada é 16 vezes mais extensa que o espectro visível!
Por outro lado, o físico francês Edmond Becquerel há muito que fotografou o espectro químico.[vi] Esse espectro, cujo estudo foi continuado depois, é cerca de duas vezes mais extenso que o espectro visível.
Deixando a região do espectro solar estudado, chegamos à que é para os nossos sentidos e meios de pesquisa uma outra região desconhecida e a funções de que apenas começamos a suspeitar. É provável que se chegue a encontrar os raios Roentgen entre o 58º e o 61º graus, lá onde as vibrações vão de 288.230.376.151.711.744 a 2.305.843.009.213.693.952, por segundo, ou mesmo mais.
Vê-se que nesta série há diversas grandes lacunas ou regiões desconhecidas, sobre as quais nada absolutamente sabemos. Quem poderia dizer que estas vibrações não desempenham um papel importante na economia geral do Universo?
Afinal, não existem vibrações ainda mais rápidas do que essas em que se deteve a série precedente?
Vivemos em um espaço a três dimensões. Seres que vivessem em um espaço a duas dimensões, na superfície de um círculo, por exemplo, em um plano, não conheceriam senão a geometria a duas dimensões, não poderiam passar por cima da linha que limita um círculo ou um quadrado, seriam aprisionados por uma circunferência, sem possibilidade de saírem dela. Dai-lhes uma terceira dimensão, com a faculdade de se moverem na mesma: eles passarão muito simplesmente por cima da linha, sem rompê-la, sem mesmo precisarem tocá-la. As seis superfícies de uma peça fechada (4 paredes, assoalho e teto) nos aprisionam; suponhamos, porém, uma quarta dimensão e sejamos dotados da faculdade de viver nela: sairemos de nossa prisão tão facilmente como um homem passa acima de uma linha traçada sobre o solo.
Do mesmo modo que um ser organizado para mover-se unicamente em um plano (n. 2), não poderia conceber o espaço cúbico (n. 3), também não podemos conceber esse hiperespaço (n. 4), a que nos acabamos de referir; mas nem por isso, entretanto, estamos autorizados a declarar que ele não existe.
Há, mesmo na vida terrestre, certas faculdades inexplicadas para o homem, certos sentidos ignorados.
De que modo conseguem os pombos viajores e as andorinhas de novo encontrar os seus ninhos? De que maneira pode o cão voltar a sua casa, a muitas centenas de quilômetros de distância, por um caminho que jamais percorreu? Como pode a víbora conseguir a descida de um pássaro à sua goela e de que modo procede o lagarto para atrair a si a borboleta fascinada? etc., etc. Mostrei, noutro lugar, que os habitantes de outros mundos devem ser dotados de sentidos muito diversos dos nossos.
Nada conhecemos de absoluto. Todos os nossos juízos são relativos, por conseguinte imperfeitos e incompletos.
A sabedoria científica consiste, pois, em sermos muito reservados em nossas negativas. Temos o direito de ser modestos. “A dúvida é uma prova de modéstia, diremos com Arago, e raramente ela tem criado obstáculos aos progressos das ciências. Não se poderia dizer o mesmo da incredulidade.
Há ainda grande número de fatos inexplicados, que pertencem ao domínio do desconhecido. Os fenômenos de que nos vamos ocupar são deste número. A telepatia, ou sensação a distância; as aparições ou manifestações de moribundos; a transmissão do pensamento; a visão em sonho, em estado sonambúlico, sem o concurso dos olhos, de paisagens, cidades, monumentos; a presciência ou premonição de um acontecimento próximo; a previsão do futuro, os avisos, os pressentimentos; certos casos magnéticos extraordinários; os ditados inconscientes por meio de pancadas nas mesas; certos ruídos inexplicados, as casas mal assombradas; os levantamentos ou levitações contrárias às da gravidade; os movimentos e transportes de objetos sem contato; certos fatos que lembram materializações de forças (o que parece absurdo); as manifestações aparentes ou reais, de almas desencarnadas ou de espíritos de toda ordem; e muitos outros fenômenos estranhos e atualmente inexplicáveis, merecem nossa curiosidade e nossa atenção científica.
Convençamo-nos, ao demais, que tudo aquilo que podemos observar e estudar é natural, e que devemos examinar todos os fatos tranqüilamente, cientificamente, sem preocupação de mistério, sem precipitações nem misticismos, como se se tratasse de astronomia, de física ou de fisiologia. tudo está na natureza, tanto o desconhecido como o conhecido, e o sobrenatural não existe. Esta é uma palavra vazia de sentido.[vii] Os eclipses, os cometas, as estrelas temporárias eram vistos como sobrenaturais, como manifestações da cólera divina, antes de se ter o conhecimento das leis que os regem. Qualifica-se muitas vezes de sobrenatural o que é maravilhoso, extraordinário, inexplicado. Cumpre dizer, muito simplesmente, desconhecido.
Os críticos que quisessem ver nesta obra um retorno aos tempos da superstição seriam vítimas de um erro grosseiro. Trata-se, pelo contrário, de análise e de exame.
Aqueles que dizem: “Eu, crer nesses impossíveis, jamais! Não creio senão nas leis da Natureza e estas leis são conhecidas”, parecem-se com os antigos geógrafos simplórios que escreviam sobre seus mapas-mundi, no local das colunas de Hércules (estreito de Gibraltar): Hic Deficit Orbis (“aqui acaba o mundo”), sem desconfiarem de que neste espaço ocidental, desconhecido e vazio, há duas vezes mais terras do que as que esses hábeis geógrafos conheciam.
Todos os nossos conhecimentos humanos poderiam ser representados simbolicamente por uma pequena ilha, uma ilha minúscula, rodeada por um oceano sem limites.
Resta-nos ainda muito, muito a aprender.


[i]     Pode-se ler mais adiante (Capítulo VIII, caso XLIII), o Relatório Oficial escrito a respeito dessa memorável operação cirúrgica. Foi ela realizada em 12 de abril de 1829.
[ii]    Assisti, com a idade de seis anos, à construção da linha do caminho de ferro Paris-Lião-Mediterrâneo, na secção de Tonnerre a Dijon e, com a idade de 12 anos, à de Paris e Mulhouse, na secção de Chaumont e Chalindrey, e me lembro, como se fosse ontem, das conversações que se entabulavam em torno de mim. Ninguém tinha uma intuição dos desenvolvimentos que as redes deviam tomar em menos de meio século e, longe de pensarem em ter as estações ao seu alcance, todos estavam dispostos a afastá-las o mais possível, pelo menos em Langres, onde comecei meus estudos e na minha aldeia de Montigny-le-Roi. Notadamente nestes dois pontos, as gares se acham tão isoladas e tão afastadas quanto possível dos centros comerciais de cada região.
[iii]    Raios luminosos, caloríficos e químicos, espectro do infravermelho ao ultravioleta.
[iv]    A descarga de uma garrafa de Leyde através de uma bobina de fios muito finos e longos dá origem a vibrações eletromagnéticas, cujos períodos determinados por Helmholtz (1869) e após ele por muitos outros observadores, podem ser compreendidos entre 1.000 e 10.000 por segundo para os aparelhos usuais. Em 1888, Hertz conseguiu reproduzir vibrações da mesma natureza, de 100.000 por segundo, bem como estudar-lhes o modo de propagação. Propagando-se essas vibrações no vácuo (éter), o que as distingue das vibrações sonoras que só se propagam na matéria ordinária (ar, água, madeira, etc.), é racional considerá-las como de natureza análoga às vibrações do calor radiante, de acordo com as idéias emitidas por Maxwell desde 1867. Vide sir W. Thomson, Conferências, pág. 189.
[v]     Boletim da Sociedade Astronômica de França, ano de 1895, pág. 110. Vide também o do ano de 1897, pág. 307.
[vi]    Vide Lumière, Paris 1868, tomo I, pág. 131.
[vii]   Permito-me sobre este ponto remeter o leitor à minha obra Deus na Natureza.
Camille Flammarion: Livro: O desconhecido e os Problemas Psíquicos...
Fonte:www.
autoresespiritasclassicos.com
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário