Capítulo II
O Porquê da Vida
Como eu dizia, narrando, rapidamente, a vida de Léon Denis,[i]
essa brochura ele compôs com a intenção de apoiar sua obra de conferências e
permitir a seus ouvintes conservar um resumo da Doutrina Espírita.
O Porquê da Vida
teve um grande sucesso de livraria. O autor tinha mandado imprimir cinco mil
exemplares em setembro de 1885; conforme carta que escreveu a Henri Sausse,
quatro mil exemplares já estavam vendidos, em novembro do mesmo ano, e ele foi
obrigado a tirar uma nova edição.
Hoje,[ii]
essa brochura deve atingir 160 edições, o que comprova quanto é grande o número
dos que ele pôde ajudar a conhecer o Espiritismo e suas consolações.
Em Le Spiritisme,
primeira quinzena de setembro de 1885, julgou-se assim O Porquê da Vida:
“Recebemos uma brochura de nosso amigo Léon Denis, de
Tours, sob um curto título: O Porquê da Vida.
Desnecessário elogiar o estilo dessa obra; basta-nos dizer
que ela é devida à pena de nosso colaborador e facilmente se descobrirá de quem
se trata...
Ele desenvolve, com um talento superior, no restrito espaço
de que dispõe, os esplêndidos horizontes que a nova filosofia nos abre. De
início, coordena o dever e a liberdade; depois, apresenta os misteriosos
problemas da existência. Daí, estabelece as duas formas da natureza: espírito e
matéria.
Após ter analisado a harmonia do Universo, chega às vidas
sucessivas, que têm por base a justiça e o progresso.
Afinal, faz entrever, numa apreciação sobre o incognoscível,
qual é o objetivo supremo e comprova essas proposições com as experiências que
o Espiritismo fornece sobre a imortalidade da alma.”
Eu possuo uma das edições de capa rosa; é a mais
preciosa jóia de minha biblioteca; jamais consigo olhar essa fina brochura sem
sentir uma sincera emoção e sem deixar de lembrar daquele de quem ela conserva,
ainda, o pseudônimo de Claude Clodovitch: O Almirante d’A., graças a quem me
tornei espírita.
O Porquê da Vida
foi o primeiro livro sobre nossa Doutrina que consegui ler.
Durante muito tempo, frequentei um salão onde se tratava de
Espiritismo, o da Sra. M., hoje desencarnada; mulher de um oficial superior e
que, realmente, muito fez pela causa espírita, embora tenha sido, de certa
forma, do número desses exaltados [iii]
que procuram principalmente os fenômenos, sem saber distinguir quando as
manifestações são mistificadas.[iv]
Conheci a Sra. M. durante uma palestra, seguida de sauterie,[v] no
Parthénon. Um de meus amigos veio a mim e me disse:
– Você é jornalista; quer ter ocasião para uma pesquisa
engraçada?
– Com prazer.
– Vê aquela senhora lá embaixo? Ela sabe conversar com os
mortos!
– Com os mortos?! Não, você está pensando que sou imbecil?
– Não digo para você acreditar, meu caro! Vou apresentar você
a ela, que gosta de convidar todo mundo. Faça um ar de que está um pouco
interessado e, certamente, lá existirá, para você, assunto para crônicas
curiosas.
Naquela época, tendo abandonado o Catolicismo, tornara-me
ateu e materialista ao extremo. Proferia palestras, nas quais defendia essas
desagradáveis idéias; e isto constitui um dos maiores arrependimentos de minha
existência. Fiquei feliz por uma tal oportunidade e me fiz apresentar à Sra. M.
– Você sabe, disse-me logo, eu converso com os espíritos.
– Bem, minha senhora.
– Quer ver isso?
– Com prazer, senhora.
Durante alguns anos frequentei sua casa, cada tarde de
quinta-feira. Vi muitos fenômenos ditos espíritas, mas os que os aceitam como
tal são geralmente dignos de entrar para uma casa de alienados. Vi pessoas que
imaginavam falar com seus mortos e vi mulheres que se diziam médiuns.
– Três homens me fazem a corte... Quem é que me pagará o mais
belo casaco?
Vi homens que perguntavam qual era o valor da bolsa onde
poderiam especular ou qual cavalo iria ganhar o Grande Prêmio!
Eu havia preparado, então, um romance que teria ridicularizado
os que, de boa-fé, eu chamava de espíritas; estava convencido de que uma pessoa
não podia se ocupar dessas coisas, a não ser que estivesse um pouco
desequilibrada; outrossim, eu jamais abrira um livro que tratasse de Espiritismo.
Em suma, eu fazia o que fazem nossos adversários e é por isso
que lhes respondo com cortesia a seus ataques. Eu criticava uma coisa que
pensava conhecer, mas que eu mal conhecia, pois frequentara um mau ambiente.
A guerra sobreveio. Reformado em tempo de paz por tuberculose
contraída em serviço militar, tentara me inscrever como piloto, porque possuía
diploma de aviador civil. Não o conseguindo, pude tornar-me útil organizando,
na região de Persan Baumont, um serviço de consertos de automóveis e havia,
naturalmente, perdido de vista a Sra. M. e seus frequentadores.
Minha mulher, tendo-a encontrado e tendo sido convidada a
retornar às quintas-feiras às suas reuniões, aceitou o convite e quis me levar,
mas recusei, energicamente. Meus documentos estavam em ordem para o meu serviço
e meu livro podia ser escrito. Não havia, portanto, necessidade de retornar a
esse meio.
Tinha sido mobilizado como enfermeiro militar em Paris. Minha
mulher era católica praticante, possuía boas noções de teologia e meu ateísmo a
desolava. Frequentemente, mantínhamos longas discussões a propósito, mas sempre
se achava desarmada quando eu lhe perguntava como Deus pode ter criado o
inferno.
Distraindo-se muito em casa da Sra. M., lá ela ia,
regularmente, e me contava as experiências a que assistira, sem lhes prestar
muita atenção e sem admitir outras causas como a sugestão, a alucinação ou a
fraude.
Certa feita, ela me falou que reencontrara em casa da Sra. M.
o Almirante d’A, o qual eu conhecia bem, tendo-o como colega, participando de
uma obra de beneficência.
Eu tinha por esse homem uma grande simpatia e havia
constatado suas qualidades de calma, de moderação e de julgamento sereno.
Como poderia ele acreditar na realidade do Espiritismo? Tive
com minha mulher uma longa e interessante conversa a respeito.
– Você deveria ir comigo, quinta-feira próxima, à casa da
Sra. M. – disse-me ela. – O almirante lá estará e ficará muito contente em
vê-lo e em poder adormecer um médium em sua presença. O sono do médium pareceu-me
real. Existe algo de espantoso. Que diferença com o charlatanismo que vimos
naquele salão! Além disso, a Sra. M. ficará contente em rever você.
Eu havia dito, francamente, à Sra. M. e a seus frequentadores
o que pensava de suas práticas; apesar de minha franqueza, ela me pedia para
retornar à sua casa. Eu não estava aborrecido por retornar e rever o almirante,
perdido de vista desde o começo das hostilidades.
Não pude lembrar tudo isso sem uma real emoção; o instante em
que tomei a decisão de reencontrar os frequentadores do salão da Sra. M. foi
aquele em que comecei o caminho da felicidade.
Sem o saber, buscava uma existência feliz; até então, tinha
estado muitas vezes desesperado, nada compreendendo dos motivos da vinda do
homem à Terra.
Minha conversa com o almirante foi decisiva; pela primeira
vez, tinha a ocasião de conhecer o que é, realmente, o Espiritismo, explicado
por um homem competente; de aprender que sábios, inicialmente incrédulos, como,
por exemplo, William Crookes, tinham sido obrigados a declarar, oficialmente, a
realidade do “fenômeno”, após haverem investigado seriamente. E, entretanto,
minha incredulidade me obrigava a guardar uma atitude zombeteira.
– Meu caro amigo – disse-me o almirante – não negue assim.
Não baseie seu julgamento no que você viu e ouviu aqui. Leia.
– Não quero ler toda essa literatura de loucura.
– Seu dever de homem é instruir-se. Quando você lê um romance
policial, sabe estar lendo uma obra de imaginação. Pegue uma obra espírita e
faça o mesmo; você não é obrigado a aceitar o autor em suas conclusões. Por exemplo,
Depois da Morte, de Léon Denis, é
atraente como um romance e a forma literária lhe agradará, estou certo. Se você
quiser, faça de conta que é uma obra de pura invenção.
– Não estou disposto a desperdiçar meu tempo.
– Ao contrário, você não o desperdiçará.
Tirando de seu bolso uma pequena brochura rosa, o almirante
me disse:
– Leia estas poucas páginas, é pouca coisa. Estude este
pequeno fascículo: O Porquê da Vida.
Faça-me esta promessa, eu lhe peço.
Isso se passava em 1915, pelo mês de fevereiro. Prometi e li.
Pude assim compreender que existe algo de sério no Espiritismo.
Até então, não havia podido ter uma impressão assim.
Havia assistido a experiências de enganadores, aproveitadores
da ingenuidade de uma mulher da sociedade para se servirem de seu salão; eu
vira pretensos professores de hipnologia, quiromancia e ocultismo... Vira
falsos médiuns que lançam urros: “Ai... um espírito me mordeu... um espírito me
beliscou”. Era sempre numa parte do corpo onde não se podia verificar.
Faziam experiências em minha frente. O professor gritava:
– Atenção, vou adormecê-la... atenção... ela dorme... perguntem-lhe
o que quiser... façam-lhe uma pergunta... ela vai responder...
A solução era sempre a mesma:
– Ela não lhes pode dizer tudo; vê muitas coisas, venham a
meu consultório.
Naturalmente, a consulta em domicílio custava bastante caro.
Como, diante de tais espetáculos, teria podido conhecer o Espiritismo e
abandonar minha atitude contestadora?
Todavia, lendo O Porquê
da Vida, tive que reformular meu julgamento e pude, em seguida, ter longas
conversas com o Almirante d’A., ao qual consagrei um grande reconhecimento pelos
preciosos conselhos que me deu e por apresentar-me, experimentalmente, o
magnetismo.
Quando, finalmente, parti para a aviação militar, ele
continuou a me guiar, escrevendo-me com frequência e me incentivando a ler
obras de Allan Kardec.
Eu devia, sobretudo, conhecer a obra de Léon Denis, após meus
ferimentos de guerra; permaneci durante muito tempo acamado e, em diferentes
hospitais onde era tratado, tinha tempo de me aprofundar no estudo do
Espiritismo.
Paul Leymarie me havia remetido, amavelmente, uns livros e a
Sra. M. me enviou Depois da Morte,
tendo podido, assim, pouco a pouco, aprender a me resignar, a suportar meus
sofrimentos.
Devotei a Léon Denis uma profunda gratidão e tenho igualmente
por Gabriel Delanne um grande reconhecimento.
Tendo estudado muito Matemática, e mesmo me preparado para a
Escola Politécnica, pude encontrar nas obras desse técnico argumentos valiosos,
porque ele emprega processos de demonstração precisos, abandonando na maior
parte do tempo o envolvimento literário ou filosófico.
É por isso que Léon Denis e Gabriel Delanne se completam tão
bem.
Se, sem se tomar partido e sem idéia preconcebida, lermos uma
obra de Léon Denis e uma obra de Gabriel Delanne, chegaremos à realidade do
Espiritismo.
Em O Porquê da Vida,
já se percebe o objetivo pretendido por Léon Denis. Sente-se que, para ele, a
propagação do Espiritismo foi a continuidade lógica da ação social que ele
tinha pretendido na Loja dos Demófilos de Tours e na Liga do Ensino.
Desejava ele outra coisa a não ser proporcionar a felicidade
para todos os seres humanos? Certamente não, e encontramos a prova disso no
capítulo IX - Resumo e Conclusão da
referida obra:
“O espetáculo das desigualdades sociais, os
sofrimentos de uns em oposição às aparentes alegrias, às satisfações sensuais,
à indiferença de outros, esse espetáculo lança no coração dos deserdados um
ardente fogo de ódio, e a busca dos bens materiais se acentua. Que as massas
profundas se organizem, se levantem, e o velho mundo pode ser abalado por
terríveis convulsões.
A Ciência é impotente para conjurar o mal, para modelar os
caracteres, para curar os ferimentos dos combatentes da vida.
Em verdade, só há, em nossa época, ciências especiais para
certos aspectos da natureza, acumulando fatos, trazendo ao espírito humano uma
soma de conhecimentos sobre o assunto que lhes é próprio.
É assim que as ciências físicas são prodigiosamente enriquecidas,
há meio século, porém esses conhecimentos esparsos são falhos de conexão, de
unidade, de harmonia.
A Ciência em especial, aquela que, da série dos fatos
chegará à causa que os produz; aquela que deve religar, unir essas ciências
diferentes numa grande e magnífica síntese, fazendo jorrar uma concepção geral
da vida, fixar nossos destinos, deduzir uma lei moral, uma base para o
melhoramento social, essa ciência universal, indispensável, ainda não existe.
Se as religiões agonizam, se a velha fé se amortece, se a
Ciência é impotente para fornecer ao homem o ideal necessário a regular sua
marcha, a melhorar as sociedades, será tudo uma desesperança?
Não, porque uma doutrina de paz, de fraternidade, de
progresso se levanta nesse mundo perturbado e vem apaziguar os ódios selvagens,
acalmar as paixões, ensinar a todos a solidariedade, o perdão, a bondade.
Ela oferece à Ciência essa síntese desejada, sem a qual
seria para sempre estéril. Ela triunfa sobre a morte e, para além desta vida de
provações e males, abre para o espírito as radiosas perspectivas de um progresso
sem limites na imortalidade.
Ela diz a todos: Venham a mim, eu os aliviarei, eu os
consolarei; eu lhes tornarei a vida mais suave, a coragem e a paciência mais
fáceis, as provações mais suportáveis. Iluminarei com um poderoso clarão seus
caminhos obscuros e tortuosos. Aos que sofrem, dou esperança; aos que buscam,
dou a luz e aos que duvidam e se desesperam, dou a certeza e a fé.
Ela diz a todos: Sejam fraternos, auxiliem-se, sustentem-se
em sua caminhada coletiva.
Seu objetivo está além desta vida material e transitória. É
nesse futuro espiritual que estarão unidos como membros de uma só família, ao
abrigo dos sofrimentos e dos males sem conta.
Procurem, pois, tornar-se merecedores, com seus esforços e
trabalho.
A humanidade se elevará, grande e forte, no dia em que essa
doutrina, fonte infinita de consolações, seja compreendida e aceita.
Nesse dia, a inveja e o ódio se extinguirão do coração das
crianças; o poderoso, sabendo que ele foi fraco, e que a isso pode reverter,
que sua riqueza é apenas um depósito do Alto, tornar-se-á fraterno, mais amável
para com seus irmãos necessitados.
A Ciência, completa, fecundada pela nova filosofia, expulsará
as superstições e as trevas. Não haverá mais ateus nem incrédulos.
Uma fé simples, ampla, fraterna, se estenderá sobre as
nações, fará cessar seus ressentimentos, suas rivalidades profundas.
A Terra, livre dos flagelos que a devastam, prosseguirá seu
progresso moral e se elevará a um grau mais alto na escala dos mundos.
Henri Regnault
A Morte não Existe
Com base nas obras de Léon Denis
[i] Ver capítulo I.
[ii] 1928. (N.T.)
[iii] Ver análise que Allan Kardec faz sobre
espíritas exaltados em O Livro dos
Médiuns, 1ª parte, cap. III, item 28. (N.E.)
[iv] Em nosso livro sobre a vida de Gabriel
Delanne, Paul Bodier e eu teremos a oportunidade de mostrar até aonde vai a credulidade
de certos espíritas. (*)
(*) Essa
obra foi publicada em português pela Editora CELD, a partir de 1988, sob o
título Gabriel Delanne – sua Vida, seu
Apostolado e sua Obra. (N.E.)
[v] Na época eram comuns as palestras nas
reuniões sociais. Sauterie era como
se chamavam as reuniões sociais. (N.E.)
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